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‘Eu não quero virar uma Rainha da Inglaterra’

Marcello Serpa fala ao Clubeonline

01.09.15

Clubeonline: Um cara como você, com tamanha energia criativa, certamente não pensa em parar de produzir. Você disse em seu texto de despedida, publicado no Facebook (reproduzido na íntegra, abaixo), que começa agora o caminho de volta. Acredito que nesta volta seus bolsos irão carregados de pincéis e tintas para reformar e pintar de novo todo o trajeto. É isso mesmo?

Marcello Serpa: O texto (de despedida) foi em cima de uma alegoria que, um pouco antes de eu entrar como sócio na Almap, quando eu tinha 30 anos, caiu na minha mão. E eu lendo aquilo lá, estava exatamente na contramão do que dizia o texto. Eu estava justamente num momento de expansão, criando, fazendo, entrando numa agência e tocando uma vida nova. Mas eu guardei aquilo de uma maneira muito forte, no meu subconsciente, por todos esses anos. Sempre foi importante para mim que eu fizesse as coisas pelo prazer de fazê-las e não pelo prazer de conquistá-las – no sentindo de acumular coisas. Sempre tive um prazer enorme pela profissão, sempre gostei muito de propaganda, do processo, da relação com os clientes, isso me deu um prazer enorme. Acho que naquela época eu não podia imaginar que o Zé (José Luiz Madeira) e eu pudéssemos chegar onde nós chegamos. Nós fomos fazendo, criando, vendendo campanhas, os clientes foram comprando nossas ideias, e a agência foi crescendo, ganhando prêmios, fazendo trabalhos fantásticos. Muitas pessoas maravilhosas trabalhando conosco. Depois de tanto tempo, 22 anos só na Almap, sem contar o que eu fiz antes, chega um momento que você se pergunta se aquele "meio-dia" já tinha chegado, se não estava na hora de voltar, e eu acho que cheguei nisso. Depois de 22 anos, conquistei tudo que podia ter conquistado umas duas ou três vezes. O Zé e eu sentamos, conversamos e chegamos à conclusão de que era hora de começar a preparar a sucessão da Almap, há dois anos. Não iríamos sair da agência e deixar um caos. Escolhemos um momento muito bom, com sócios que já conheciam bem a maneira que a gente trabalhava, fizemos um coaching muito forte com eles nestes dois anos, preparamos a sucessão, e comunicamos a eles, duas semanas atrás, que havia chegado a hora e que eles iriam tocar a agência daqui para frente. E eu e o Zé vendemos as nossas ações e saímos da operação.

Clubeonline: Seus planos incluem uma mudança de país? O Brasil está muito difícil ou a vontade é mesmo de surfar no Havaí, por exemplo?

Serpa: Todo mundo me pergunta: “Você está saindo da propaganda para surfar?”. Não é tão verdade porque eu já surfo enquanto faço propaganda há muito tempo. Sempre consegui conciliar as duas coisas. Sempre viajei no final do ano, ia com meus amigos para Indonésia, para Maldivas, para o Havaí todo final de ano para surfar. Sempre conciliei isso de uma maneira muito boa. Eu pretendo no final do ano sair de férias, voltar no ano que vem. Aí, em julho de 2016, provavelmente – não está confirmado ainda – a gente vai tentar fazer um ano sabático. Fazer com a família toda e viajar um pouco. Não tem nada a ver com a situação do Brasil, não me vejo morando fora, nem abandonando esse país. Eu sou daqui, tenho meu DNA aqui, minha raiz aqui, já morei fora quando eu era moleque por sete anos, então já passei por essa fase e não tenho a menor necessidade de 'morar fora'. Tenho sim, vontade de fazer um ano sabático para ler uns livros, pintar, separar todas as coisas e descobrir lá na frente o que vai aparecer na minha vida, que me faça voltar ou começar uma coisa nova. Deixo em aberto, acho que o caos ajuda um pouquinho. Eu provoquei uma bagunça para descobrir lá na frente o que vai acontecer.

Clubeonline: Nesses 34 anos de propaganda (22 deles na Almap), quais momentos ou campanhas vêm à sua mente, de cara, assim que puxa pela memória, e te enchem de orgulho e prazer? (sim, imagino que sejam dezenas, mas deve haver os ‘mais, mais’).

Serpa: Acho que as boas coisas que fizemos para Volkswagen, trabalhos memoráveis-  filmes, anúncios, campanhas -, que daqui a 20 anos, se as pessoas virem, assistirem, vão continuar achando que têm uma relevância muito forte. Eu acho que todo o trabalho – o conjunto da obra – para Havaianas é um dos grandes cases da propaganda brasileira, um trabalho muito bonito e boa parte dele tem meu DNA, tem meu dedo. Tem também as campanhas para Pepsi internacional, para Bradesco Seguros... Tem muita coisa, né? Tem o Grand Prix de Guaraná Antarctica (primeiro GP do Brasil em Cannes, com o cartaz “Umbigo”, para Guaraná Antarctica Diet, em 1993) e outras campanhas excelentes que eu fiz na DM9, coisas fantásticas que até hoje eu tenho muito orgulho, que eu gosto e tenho um carinho enorme por elas.

Clubeonline: O que de mais importante mudou no mercado publicitário, nesses 34 anos? Ele pode ser mais interessante, nos próximos anos, do que é hoje ou foi ontem?

Serpa: Olha, eu acho que o mercado de propaganda será sempre interessante para a geração que nascer naquela época. Porque a propaganda, independente do meio que você está discutindo - se é digital, se é off line ou se não é – é uma ferramenta absurdamente forte para mexer com a economia do país, para mexer com as marcas, mexer com a história das marcas. Nós estamos passando por um momento em que há uma certa dificuldade de entendimento do 'para que serve a propaganda'. Há um certo deslumbre com as mídias sociais que talvez nos leve a acreditar que a audiência é mais importante que a relevância. O que eu quero dizer com isso? Que está se buscando muito mais ‘likes’, muito mais audiência, impacto, do que a qualidade, a inteligência, uma mensagem um pouco mais relevante, profunda sobre marcas. Tem muitas campanhas que estão sendo criadas em busca apenas de audiência. Talvez mude daqui a pouco, talvez seja um deslumbramento com a ‘indústria do like’, do impacto, do viral, e não da inteligência. Os raciocínios das campanhas construídas ao longo do tempo são muito mais enraizados e trazem muito mais resultados em médio e longo prazos para as marcas. Campanhas como as de Volkswagen e Havaianas, por exemplo, têm hoje um residual muito forte na memória das pessoas. As empresas podem passar por crises ou dificuldades, mas a imagem está enraizada na cabeça das pessoas.

Clubeonline: A AlmapBBDO sempre foi reconhecida como uma agência de excelência criativa. Obviamente, muitíssimo por conta do seu DNA. Qual a parte mais complicada de fazer de uma agência um celeiro criativo? E qual a parte mais fácil?

Serpa: É difícil você responder isso pelo seguinte, não tínhamos um objetivo muito concreto de ‘vamos fazer um trabalho criativo’. Você acaba fazendo aquilo que você acredita ser o melhor trabalho. Então, eu sempre brinco que a gente não tinha planos, a gente queria ‘fazer a melhor agência do Brasil’, ‘fazer o melhor trabalho do país’. Essa ambição todo moleque tem e nós tínhamos na época. Mas a vontade mesmo era de fazer cada peça, cada filme, cada campanha, a melhor campanha que pudéssemos fazer naquele momento. Ou seja, dizendo em bom português, fazer um trabalho ‘fodido’. Se você fizer isso coerentemente, consistentemente, você vai acumular um conjunto de trabalhos muito bons. Lógico que você não vai acertar sempre, vai errar também, mas a busca constante é que deixa um corpo de trabalho consistente, forte e criativo. Não é buscando o reconhecimento que você consegue (ser criativo). Você consegue o reconhecimento buscando muito trabalho.

Clubeonline: E o Brasil, pode ser melhor? Aliás, o mundo está complicadíssimo e o planeta em pane climática. Você consegue ser otimista?

Serpa: Eu sou naturalmente otimista. Eu acho que a gente esquece que nos anos 50 as pessoas tinham medo do cataclisma nuclear, do fim dos tempos, de um botão que poderia destruir o mundo. As pessoas sempre viveram sob uma ameaça, seja um cometa, o aquecimento global. Acho que a humanidade precisa dessas 'ameaças' para se mexer, para se manter em movimento. Eu sou altamente otimista, acredito que os problemas vão ser resolvidos de uma forma ou de outra. Nós vamos viver mudanças muito fortes, e o Brasil, independente do resto do mundo, vai sair dessa – ainda demora um pouco, uns dois, três anos – depois o Brasil volta a crescer, volta a recuperar a auto-estima, a alegria que nós perdemos, e a confiança. Esse é um país que considero ‘meu’ e não tenho outra opção a não ser gostar muito dele.

Clubeonline: Este agosto foi marcante para o mercado publicitário, muito pelo seu desligamento, bem como o do José Luiz Madeira, mas também pelas inúmeras mudanças que aconteceram dentre líderes criativos de importantes agências. Mera coincidência?

Serpa: O fato de ser tudo no mesmo mês é mera coincidência. O fato de ter sido na mesma época, eu acho que não. O Celso (Loducca) estava há 20 anos tocando e fazendo a Loducca, o Edu (Eduardo Lima) também estava há 20 anos na F/Nazca - não como presidente, mas como um dos responsáveis pela qualidade criativa da F/Nazca - eu, há 22 anos na Almap, é um tempo muito longo. Nossa profissão exige muito. Ser um criativo de ponta, realizar um trabalho de ponta, é quase que um trabalho de piloto de Fórmula 1. Depois de 20 e tantos anos, você começa a puxar o pé um pouquinho, você começa a fazer a curva um pouco mais devagar que os outros. Você tem que reconhecer que está diminuindo um pouco o ritmo e se isso te interessa ou não. Do Edu e do Celso eu não sei, mas posso falar de mim: depois de 22 anos eu não quero virar uma ‘Rainha da Inglaterra’, eu não quero virar um cara que daqui a 10 anos vai estar defendendo o legado da AlmapBBDO, a história. Eu não quero ficar velho e ‘não largar o osso’. Eu acho que sou mais desprendido do que isso. Já fiz, foi ótimo, foi maravilhoso. Em hipótese alguma eu me vejo, daqui a 10 anos, defendendo um legado do passado, que eu chamo de ‘porteiro de museu’. Não tenho essa vocação. O Zé (Madeira) me disse uma frase bacana: ‘o bom padeiro vende a padaria quando ela está no auge’. Eu e o Zé, como dois bons padeiros, vendemos a padaria no auge – esse senso de ‘timing’ é importantíssimo para gente.

Clubeonline: Algo mais?

Serpa: Posso dizer duas coisas: primeiro que eu estou feliz e realizado com todo o trabalho que fizemos e com a agência maravilhosa que a gente construiu. O Zé e eu temos um orgulho profundo de tudo que fizemos e das pessoas que trabalharam conosco e o carinho que nós temos por elas é evidente. E outro ponto é sobre a turma que nós formamos. Nós formamos uma equipe fantástica, uns saíram, outros voltaram, muitos estão por aí dirigindo agências, mas as pessoas que estão lá conosco hoje são aquelas que nós escolhemos para tocar essa agência daqui para frente. E elas são preparadas: o Luizinho (Luiz Sanches) está super preparado, a Cintia (Gonçalves) e o Rodrigo (Andrade) também, e a equipe inteira. Nós temos hoje a melhor equipe de criação do Brasil, na minha opinião. Eles estão lá, prontos, e vão fazer a agência do jeito deles a partir de agora.

Confira abaixo, na íntegra, o texto de despedida de Marcello Serpa, postado no Facebook:

"Quando fiz 30 anos, um conto de Tolstói chegou às minhas mãos: “De quanta terra precisa o homem?” conta a história de um pequeno fazendeiro russo que se dizia muito feliz no seu lote de terra. O diabo escuta o camponês e resolve, por pura diversão, despertar nele a cobiça.

O camponês, agora ansioso, passa a comprar todos os lotes e fazendas das redondezas. Quando se torna o maior latifundiário da região, ouve falar sobre uma tribo muito distante que estava distribuindo terras.
Uma vez lá, ele é desafiado pelo chefe da aldeia. Por um valor simbólico, o camponês teria toda a terra que conseguisse percorrer a pé durante um dia. Mas deveria retornar ao ponto de partida antes do pôr-do-sol ou perderia tudo o que havia conquistado.

Ele sai marcando a terra desde o nascer do sol. Ao meio-dia deveria voltar para dar tempo de chegar à aldeia antes do poente.

Com o sol ardendo no meio do céu, ele decide caminhar mais um pouco e marcar uns alqueires a mais: “Depois eu acelero o passo e chego na hora”, pensou. Quando finalmente resolve voltar, o sol já baixava mais rápido do que suas pernas podiam acompanhar.

Ele corre desesperado, com medo de perder as terras conquistadas. Corre com todas as suas forças. Corre tanto que, ao chegar de volta à aldeia, o sol se põe e ele cai morto aos pés do chefe.

Este, na verdade o próprio Diabo disfarçado, desdenha do camponês com um sorriso nos lábios: “Queria tanta terra, mas acabou com apenas um lote de 2 metros de comprimento por um de largura”.
Na época em que li este texto, ele provocou em mim uma epifania ou o que no mercado publicitário a gente costuma chamar de Insight: com 30 anos decidi que aos 50 eu daria uma olhada para cima e me perguntaria se era a hora de voltar.

Hoje, aos 52, olhei para o sol e senti que meu meio-dia havia chegado.
Corri, andei e marquei meu território nesses 34 anos de propaganda e 22 de Almap. Cheguei onde minha imaginação de garoto nunca alcançou.

É hora de voltar.

Não quero ser obrigado a correr freneticamente sem mais me lembrar o motivo.

Muito menos quero dar mole para o Demo.

Chegou a hora de sair da agência que o meu irmão, amigo e sócio José Luiz Madeira e eu construímos juntos.

Em 1993 o Alex Periscinoto, num gesto de grandeza inédito até então, nos chamou para sucedê-lo na Almap. Ali começava uma relação maravilhosa com a BBDO.

O lendário Allan Rosenshine, graças à visão do nosso amigo EduardoVargas, acreditou que poderíamos mudar o futuro de uma agência com um passado glorioso.

Alex, Allan e Eduardo nos deram uma chance, nós a usamos para mudar nossas vidas.
Deixamos agora a BBDO, mas mantemos os amigos que fizemos.
Obrigado ao Andrew Robertson pela liderança sempre exercida com uma leveza e bom humor improváveis numa indústria tão dura quanto cruel.

Obrigado ao parceiro de tantos anos David Lubars e a todos os membros do board da BBDO pelas horas que passamos juntos tentando descobrir novos caminhos para as nossas agências e dividindo experiências com quem faz propaganda boa como nenhuma outra rede no mundo.

Quando começamos, confesso que o Zé e eu éramos bem humildes. Queríamos apenas fazer o melhor trabalho do mundo.

Mas queríamos fazê-lo sem que isso custasse nossos princípios e, por favor, sem o sofrimento de quem acredita que só suando sangue é possível conquistar o sucesso.

Queríamos manter a alegria de trabalhar numa das mais divertidas profissões do mundo, a publicidade. Uma profissão em que o erro não mata ninguém e que o acerto significa o sucesso de marcas, colocando o círculo virtuoso das empresas para rodar.

Agora que inicio o caminho de volta, posso olhar com calma toda esta terra que marquei. Acho que, sem a falsa humildade dos politicamente corretos, chegamos lá.

Rimos muito, ganhamos muitos clientes maravilhosos e conquistamos todos os prêmios que existem por duas vezes, pelo menos. Acredito que deixamos um trabalho que não fará feio no melhor teste de qualidade que existe: o teste do tempo.

Fizemos amigos incríveis nos clientes, atraímos os melhores talentos da publicidade brasileira. Ajudamos a formar pessoas, que hoje estão criando e dirigindo agências pelo mundo afora.
Em cada uma delas imagino uma pequena semente da Almap. Uma semente que tem no seu DNA a certeza de que no Brasil dá para fazer um puta trabalho sem abrir mão da integridade e nem as pernas para a mediocridade.

Sair da Almap, do convívio diário com as pessoas que adoramos, é o exercício máximo do desapego. Dois monges budistas construindo de grão em grão uma mandala de pó colorido para, depois de 22 anos, abrir a janela e deixar o vento entrar.

Caminhando de volta com calma, vejo também que deixamos um legado que vai muito além do trabalho benfeito. Deixamos um time incrível para tocar a agência a partir de agora, do jeito deles.

O Luiz chegou à Almap há 18 anos com brilho nos olhos e uma faca na boca. Com o tempo tiramos a faca, porque ele poderia acabar machucando as pessoas em volta. Mas tenho certeza de que, com o brilho nos olhos e seu jeito desassombrado, ele vai levar a agência longe.

A Cintia começou na Almap e tornou-se um dos melhores profissionais de planejamento que já vi atuar. E o Rodrigo, que chegou para cuidar do cofre, provou ser ainda muito mais talentoso para negócios e relacionamentos.

Faço o caminho de volta feliz. A propaganda me deu tudo que tenho e a Almap me deu tudo o que amo. Uma agência fantástica, amigos para a vida inteira e prêmios que podem alimentar o ego por umas três gerações de Serpas.

Pelo caminho, minhas filhotas maravilhosas Fabiana e Sophia se transformaram em dois mulherões e ainda ganhei na loteria ao encontrar na Almap a Joanna. A alma gêmea que me deu a chance de ser pai novamente da Maria e do Paulo.

Vamos nos encontrar por aí. Feliz da vida, eu estarei caminhando pelas terras que marquei com um enorme sorriso no rosto.

Um sorriso maroto de quem sabe que a tarde está apenas começando."

Leia anterior, sobre a saída de Serpa e Madeira da Almap aqui.

‘Eu não quero virar uma Rainha da Inglaterra’

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