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Festival do Clube 2017

Mulheres da Quebrada: a cada 23 min. um jovem negro é morto

22.09.17

Que as mulheres, em geral, têm suas vozes podadas numa sociedade machista é fato comprovado por vários estudos e análises históricas. E se fizermos um recorte e falarmos sobre as mulheres negras e que moram na periferia? Há uma quase total ausência de representatividade. Ou, então, a representação dessa população é substancialmente deturpada por estereótipos na mídia. Essa é a percepção das debatedoras do painel "Mulheres da Quebrada", que contaram um pouco sobre seus projetos sociais e de inclusão na Cinemateca Brasileira. Todas elas encamparam alguma missão que procura tornar essa realidade menos desigual e injusta.

Com mediação da advogada e produtora Eliane Dias, da Boogie Naipe (dos Racionais MCs), Jô Maloupas, vocalista do grupo de rap Odisseia das Flores; Luana Génot, fundadora e diretora do Instituto Identidades do Brasil; Mel Duarte, poeta slammer (que participa de slams, campeonatos de poesias faladas); e Regiany Silva, designer do coletivo Nós, Mulheres da Periferia, deixaram claro, a partir de suas histórias, o grau de exclusão que essa população sofre, apesar de ser gigantesca e movimentar trilhões de reais na economia.

Regiany revelou que ela e suas seis sócias – que são jornalistas – dividem seu talento, tempo e dedicação entre seus empregos atuais e o coletivo. Segunda ela, o projeto nasceu do desejo de narrar as próprias histórias. "Acreditamos que os meios de comunicação dominados por seis grupos de homens brancos da elite hétero normativa rica contam sempre as mesmas histórias e versões”, criticou.

Em suas palavras, a mulher da periferia aparece na novela das oito na situação mais vulnerável e só está no noticiário quando chora em cima do caixão de um parente ou quando o barraco desaba. "Espero que um dia não seja apenas um desejo ver nossas histórias contadas com dignidade. A grande mídia não está disposta a pegar o trem e colar na minha quebrada, que não é só miséria. A gente morre na quebrada, sim. Tem genocídio da população negra, sim, mas, para além disso, que outras histórias são possíveis?”, questionou Regiany.

Filhas de faxineiras, as sócias do Nós formam a primeira geração de suas famílias que “conseguiu atravessar a ponte - uma expressão ligada à periferia - e cursar universidades. A partir daí, elas decidiram que, com o conhecimento adquirido, poderiam fazer mais, sendo comunicadoras. “Vamos fazer mais dentro da nossa realidade. A gente conhece a quebrada, a gente vive isso. O caso é da minha vizinha. A fonte é minha mãe. O Nós nasceu para isso”, reforçou.

Quando a questão racial entra no recorte, a situação dessas mulheres fica ainda mais urgente. E dramática. Eliane Dias salientou o fato de ser mãe de dois jovens negros, ressaltando a abismal diferença de ser mãe de brancos. “As mães de jovens brancos têm a garantia de que ele será inocente até que se prove o contrário. Mas os meus filhos já são culpados até que se prove o contrário. A cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no Brasil. Antes de sairmos daqui, com certeza um jovem negro foi assassinado”.

Com o intuito de transformar essa monstruosa construção social e inserir o jovem negro em cargos de liderança no mercado de trabalho, Luana Génot lançou a campanha “Sim à igualdade racial”. “Sou publicitária de formação. Nas agências, muitos recrutadores diziam: ‘ah, mas você não tem cara de publicitária’ ou ‘como você vai a uma reunião de cliente de turbante?’", relatou. Luana afirmou que os profissionais que trabalham nas agências não refletem a realidade brasileira. "Se quase não há negros executivos nas empresas em geral, nas agências publicitárias isso fica ainda mais evidente”.

Apesar de os negros representarem 54% da população brasileira, apenas 5% estão em cargos de comando nas companhias, de acordo com Luana. A isso o Instituto Identidade chama de racismo institucional. “Essa questão não é um problema somente dos negros. É um problema do Brasil. Nossa missão é fazer diversas partes dialogarem em prol da igualdade racial, o que vai mudar a vidas de muitas pessoas”, defendeu.

Para buscar quebrar esse ciclo, o Instituto, por meio de parcerias, oferece cursos de inglês e de capacitação profissional a pessoas negras da periferia. Além da inserção de negros em cargos de liderança, a meta é ter um CEO negro nos próximos cinco anos no Brasil.

Luana também deu um chacoalhão na plateia ao apresentar um vídeo que mostrava o "Jogo dos Privilégios", em que 13 pessoas responderam 50 perguntas sobre privilégio racial e, conforme suas respostas, davam um passo para frente ou para trás (assista abaixo). Depois, convidou todos a assumirem suas responsabilidades para mudar esse panorama, ao citar a socióloga norte-americana Angela Davis, que defende a ideia de que “não se faz igualdade racial sozinha, a luta é nossa”.

Duas outras participantes do painel estão fazendo da arte não só uma maneira de se expressar, mas também de colocar os holofotes sob as nuanças e os contornos híbridos da periferia, seja por meio do rap, seja por meio da literatura. Jô Maloupas, além de vocalista do Odisseia das Flores desde 2008, participa de outros coletivos da periferia e tem uma marca de moda independente, a Dona Vera Veste (aqui), com o intuito de gerar renda dentro da comunidade da qual ela faz parte. "O Odisseia é um grupo formado por mulheres e aborda empoderamento feminino. Queremos que a mulher seja respeitada inclusive no ambiente muitas vezes machista do rap", disse. “Sou uma mulher branca dentro do movimento negro. Somos três mulheres, duas delas são negras. Sei que tenho privilégios na sociedade por ser branca, mas quero somar à luta negra”, posicionou-se.

Mel Duarte trabalha com literatura independente há dez anos. “Comecei participando de saraus, onde encontrei um espaço para trocar textos com outras pessoas que viviam a mesma realidade que a minha – não achava que a literatura seria algo acessível para mim, até encontrar os saraus”, assinalou. Por outro lado, apesar de se tratar de um espaço para arte, onde teoricamente se esperaria uma abordagem mais inclusiva, Mel percebeu a ausência de mulheres recitando poesias ou dividindo seus textos com o público.

Cresci ouvindo que ‘poesia era coisa de mulher’. Mas nos saraus havia muita mulher apenas assistindo, só olhando os homens falando, sem participar. Precisamos contar nossas histórias por meio do nosso ponto de vista, por meio de nossa voz e nossa escrita”, defendeu.

A discussão se estendeu para o Cantinho do Palestrante, espaço que o Festival do Clube criou neste ano para que as pessoas possam conversar com quem esteve em algum painel. De forma mais intimista, porém com diálogos ainda mais contundentes, as mulheres da periferia refletiram sobre o “lugar de fala”, conceito que defende que a pessoa que vive o preconceito fale dele, já que é ela que sofre essa realidade. Nesse caso, elas discutiram se isso restringiria ou não de alguma maneira uma luta que é de todos. Além disso, comentaram sobre atualmente estarem “em alta” temas relacionados à inclusão na publicidade e sobre como elas tinham de filtrar determinadas demandas, seja no marketing ou na política, para que não fossem simplesmente “usadas”.

As trocas permitiram ver que o debate poderia se estender por mais tempo. O assunto é amplo, profundo e complexo demais e são necessárias inúmeras outras horas de discussões e muito mais tempo ainda para ações, inclusive dentro da indústria publicitária. O limite do tempo, por sua vez, remete à urgência por soluções. As questões levantadas pelas mulheres da quebrada ressaltam que é compromisso de cada um buscar transformar a sociedade, não amanhã, mas agora. Do papo, ficou não apenas muita inspiração, mas também um impulso para arregaçar as mangas.

Valéria Campos

Festival do Clube 2017

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