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Festival do Clube 2018

Estudo indica as cinco grandes falhas da comunicação

16.10.18

Imagine uma vaca no meio de uma sala desorganizada. O que as coisas que estão naquele espaço representam para o animal? Basicamente nada. A vaca está ali, olhando se há alguma coisa que possa comer ou se algo representa perigo para ela ou não, mas não faz a menor ideia do estava fazendo antes de entrar naquele lugar, não está pensando o que vai fazer depois, em seus planos futuros, nada disso.

E se nessa cena surgisse, por exemplo, a apresentadora de um programa que ajuda a organizar ambientes domésticos? Primeiro, o animal seria tirado de lá. Depois, ela começaria a arrumar a bagunça daquela sala. E por que ela consegue fazer isso? Porque ela dá significado para cada uma das coisas, ela sabe, dentre todos os objetos que estão ali, o que colocar dentro de cada caixinha.

A situação foi proposta por André Freire do Nascimento, da curadoria de conteúdo Inesplorato (que significa “desconhecido” em italiano), na abertura da palestra "Meia Palavra Basta: por que as falhas de comunicação não são a exceção, mas sim a regra", ao público do Festival do Clube. O executivo expôs o estudo “Meia Palavra”, realizado para o GNT e que busca trazer à tona as principais dificuldades relacionadas à comunicação (confira na íntegra aqui).

Nascimento iniciou a conversa com a imagem descrita acima para explicar que o que fazemos em nossas vidas é basicamente a mesma coisa que a apresentadora faria numa sala bagunçada: estamos num mundo cheio de coisas aleatórias - árvores, postes, casas etc – e tentamos enxergar o significado de tudo que vemos. Diferentemente da vaca, sabemos que um dia nossa vida vai acabar, que já vivemos um pedaço dela e tem mais outro para ser vivido e a partir daí vamos buscar um significado para a próxima parte que ainda temos pela frente.

E como fazemos isso? Traduzindo as coisas que vamos vivendo por meio da linguagem. Nascimento citou a psicanalista Leila Longo, que definiu a linguagem como “a forma mais humana de apreensão do mundo”, porque por meio dela as pessoas traduzem tudo que enxergam, de modo que possam se relacionar com essas coisas.

Mas o problema é que nós não somos eficientes como a apresentadora. Não estamos organizando tudo. Nós colocamos tudo dentro de 'caixinhas', achando que está tudo bonitinho, mas na real, estamos fazendo a maior bagunça, porque a comunicação é muito falha. E o grande problema é que o outro não é tão acessível quanto imaginamos”, defendeu.

Para explicar melhor a ideia, Nascimento usou uma metáfora, imaginando a comunicação como um pedaço de argila. "Vou fazer um avião com esse material e jogar para você. Duas coisas podem acontecer: ou você não vai conseguir segurar e esse objeto vai se espatifar no chão ou, na melhor das hipóteses, você conseguirá pegar o aviãozinho, mas vai transformá-lo, porque a argila é mole e conforme você a segura ela vai se modificar, será algo diferente do que eu enviei", ilustrou, acrescentando que, além da diferença que mensagem sofre pela interpretação de quem a recebe, há uma mudança já daquilo que sai do emissor, que é a visão dele próprio em relação à mensagem que ele quer emitir.

"A gente sempre se comunica mal", concluiu, antes de apresentar as cinco grandes falhas  de comunicação detectadas pelo estudo: ilusão de compreensão, ilusão de escuta, ilusão de tribo, ilusão de contexto e ilusão de isenção.

Para falar sobre a ilusão de compreensão, Nascimento mostrou um trecho de “The Giver”, um longa que se passa em um futuro pós- apocalíptico, quando novas regras foram adotadas e algumas palavras foram banidas com o intuito de se passar a mensagem “de maneira perfeita”, o que obviamente não funcionou.

Segundo o teórico da economia comportamental Daniel Kahneman, o cérebro possui dois tipos de sistemas funcionando: o primeiro é automático, que é ágil para resolver as coisas e que usamos para realizar tarefas simples do cotidiano, como atravessar a rua. O segundo é aquele mais lento, que demanda senso crítico, concentração e foco. Nascimento destacou que cada vez mais a sociedade está utilizando o primeiro para aquilo que cabe ao segundo, ou seja, decisões que deveriam ser refletidas estão sendo tomadas no “piloto automático”, de forma apressada.

"Isso acontece porque estamos exaustos. A sociedade é baseada no trabalho e no consumo: ou estamos trabalhando ou estamos consumindo - inclusive conteúdos - a última fronteira é a do sono, mas alguns pesquisadores estão debruçados na tentativa de descobrir maneiras para que a gente trabalhe ou consuma inclusive durante o sono", ressaltou.

Essa sobrecarga que gera exaustão - 60% dos brasileiros dizem que dormem entre quatro a seis horas, menos do que gostariam – faz com que haja uma propensão maior de consumo de conteúdos no estilo “brega, aquele que entrega a mensagem pronta de forma óbvia, que não exige esforço do público, ou pop, que também é de fácil assimilação. Existem ainda os conteúdos que entram na categoria “indie”, aqueles mais autorais, livres e que testam coisas novas, ou “eruditos”, os mais complexos, evolutivos, e que exigem mais participação de quem consome.

A classificação é inspirada em trabalhos de diversos pesquisadores dos setores da música e cultura pop, como Simon Reynolds e John Seabrook, que analisam o ecossistema de conteúdos pelo nível de densidade e grau de envolvimento e cognição exigidos.

Quando chegamos em casa exaustos do trabalho, não conseguimos pensar em nada, possivelmente vamos para o brega ou pop. Assim, a partir de um repertório muito simples estamos criando a ilusão de compreender um mundo cada vez mais complexo”, alertou Nascimento, ressaltando que, sob o ponto de vista de quem produz conteúdo, há a oportunidade não apenas de informar, mas ajudar o público a entender com mais profundidade o contexto.

Como exemplo de conteúdo que leva à reflexão, ele citou um filme lançado pela cooperativa de laticínios norte-americana Organic Valley (assista abaixo), que procura mostrar como as decisões em relação à sua produção impactam a qualidade dos produtos e a vida de seus produtores. “O tema é complexo, mas o vídeo é fácil de entender. A marca consegue pegar um conceito relativamente difícil e o apresenta numa linguagem com a qual as pessoas conseguem se relacionar”, disse.

Para explicar a ilusão de escuta, Nascimento mostrou a dificuldade de se colocar no lugar do outro e entender o que ele realmente quer dizer. Ele expôs um trecho de um “experimento” feito pelo humorista e palestrante Claudio Thebas, que demonstra o quanto as pessoas não ouvem o que as outras estão dizendo. Basicamente, Thebas pede informação sobre alguma localização a um desconhecido e emenda algo absurdo, como “a gente quer assaltar lá” ou “vamos soltar uma bomba no local”. As pessoas respondem onde fica o lugar com a maior naturalidade, provando que não escutaram a mensagem toda (veja abaixo).

Ouvimos a primeira parte e já começamos a pensar na resposta que vamos dar e já não escutamos mais o que o outro está falando”, comentou, salientando ainda a importância de se fazer um exercício de empatia para que haja escuta. “Um pressuposto para se absorver o que a pessoa está falando é colocar-se no lugar dela”.

Nesse contexto, Nascimento citou o psicanalista Christian Dunker, que aborda que na era de hiperindividualização em que vivemos, as pessoas não se escutam mais, de modo que se torna mais fácil aderir à “escuta colonizadora”, a ideia que vou escutar o outro do meu lugar de fala, responder ao outro a partir de mim mesmo. “Essa escuta, por mais generosa que seja, é uma ‘escuta colonizadora’: uma pessoa que sabe vai dizer e outro que está demandando vai receber, baseado num modelo das trocas econômicas, um compra outro vende, como nas relações de poder verticais. Sair de si é o primeiro movimento de renunciar sua identidade e o ensejo colonizador para abrir-se para o outro, colocar-se no lugar do outro, migrando para a ‘escuta transformativa’”, explicou Dunker, em vídeo apresentado por Nascimento. “Escutar o outro é abrir-se para aquilo que você ainda não compreende, que você não consegue antecipar. Ou seja, escutar o outro é renunciar à telepatia.

Depois de detalhar as duas primeiras, Nascimento também citou as três outras falhas de comunicação identificadas pelo estudo para GNT: a ilusão de tribo, a ideia de que as relações estão tomadas pela polarização; a ilusão de contexto, na qual as pessoas minimizam a importância de contextualizar, seja a distância física entre participantes, lugar, hora, entre outros elementos; e a ilusão de isenção, sobre a importância das palavras, como elas ajudam a formar indivíduos, culturas e todos os conceitos.

Essas falhas somadas levam ao declínio do diálogo, “arte na condução de almas” para Platão ou, “um encontro feliz entre duas intencionalidades”, vindo “da criação de um ambiente comum em que os dois lados participam e extraem de sua participação algo novo, inesperado, que não estava em nenhum deles”, segundo o jornalista e sociólogo Ciro Marcondes filho.

Ou seja, de acordo com essas definições apresentadas por Nascimento, para que realmente o diálogo aconteça, as pessoas deverão trocar entre elas, de modo que saiam transformadas dessa experiência.

Mas o caminho para a compreensão demanda escuta, contexto e contato, refletiu, para concluir que, embora o senso comum diga que “para bom entendedor meia palavra basta”, na realidade, com base no estudo, o ditado deveria ser um pouco diferente: “o bom entendedor é aquele que sabe que a meia palavra basta quando ela encontra a outra metade no outro.

Valéria Campos

Festival do Clube 2018

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