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Festival do Clube 2018

A trajetória anti-estilos de Cildo Meireles

25.09.18

Debater de maneira filosófica o processo de criação daquele que é considerado um dos mais conceituados artistas plásticos do Brasil é uma tarefa complexa. Até porque se trata de analisar a obra de Cildo Meireles, reverenciado por críticos daqui e do exterior, com trabalhos em exposição permanente em lugares como a Tate Modern, de Londres, e que não é "rotulável". Essa foi a missão da crítica de arte e curadora da galeria Luisa Strina, Juliana Monachesi, e de Felipe Cama, artista plástico e diretor executivo de criação da Sentimental Filmes, que entrevistaram o artista em um concorrido painel do Festival do Clube, tendo ao fundo uma apresentação em loop de diversas obras, sobretudo as de grandes dimensões, como as vistas hoje em Inhotim, instituto que conta com quatro instalações da lavra do artista carioca.

Começando pelo conceito de estilo, caro tanto ao mundo das artes quanto ao da publicidade, por permitir a criação de uma “marca registrada” capaz de estabelecer distinção e autoria do criador, Juliana questionou Cildo sobre o que considera ser sua trajetória anti-estilos, com visualidade e materialidade muito diversas, e uma conseguinte capacidade de reinvenção.

O artista disse que busca usar a liberdade que as artes plásticas lhe conferem para resolver de maneira inédita os relâmpagos que lhe passam pela cabeça. “O estilo é importante para o mercado, para as galerias, mas os artistas devem desafiar essa lógica”, defendeu.

Evocando o criador do conceito de “ready made”, Marcel Duchamp, Juliana destacou o fato das obras de Cildo serem pensadas para envolver todos os sentidos, com elementos sonoros, olfativos, táteis, entre outros, reflexo, segundo Cildo, de sua preocupação em poder oferecer a todos a possibilidade de fruição da obra de arte, mesmo àqueles privados de algum sentido, como os que não podem enxergar. “Oiticica se refere ao conceito de obra plurisensorial, que me interessa, pois acredito que a obra de arte não pode ser restritiva, deve ser aberta a outros sentidos, outras percepções”.

Como exemplo de obra que vai além da dimensão visual, Felipe Cama evocou a obra Torre de Babel, instalação feita de rádios de diferentes modelos e sintonizados em diferentes estações que, mesmo concebida nos anos 1990, ou seja, antes das redes sociais, “apresenta uma cacofonia que pode ser relacionada aos dias atuais, onde cada um grita em suas próprias bolhas virtuais”.

Ao discorrer sobre a verdadeira epopeia por trás do processo de execução de "Torre de Babel", cujos aparelhos de rádio vieram do que restou de uma coleção particular de 15 mil exemplares, pilhada e em parte tragada por cupins, Cildo disse que ela era uma perfeita metáfora do Brasil.

Ainda nesse território da decadência, Cildo detalhou a "biografia" (termo que escolhe em vez de "processo criativo") por trás de outra obra sua, "Pano de Roda", fruto de uma leitura de artigo de jornal sobre a decadência do circo nos anos 1960. “Quando o dono do circo falia, e já não tinha dinheiro para honrar seus compromissos, ele cortava pedaços da grande lona e dava para os artistas aos quais estava devendo dinheiro, para que cada um pudesse armar seu próprio pequeno circo e assim seguir sobrevivendo. A essa tradição se dava o nome 'Pano de roda'”.

Os relâmpagos criativos de Cildo podem surgir até mesmo de um prosaico celofane usado na embalagem de um produto que ele comprou. Datada de 1989, a instalação “Através” apresenta uma composição espacial de diferentes materiais, que ganham vida com a circulação do espectador entre eles. "Diria que não tenho um processo de criação. São as obras que têm pequenas biografias. 'Através' começou quando comprei algo que estava empacotado em celofane, um papel com memória, que faz barulho. Isso me remeteu à minha infância em Brasília, as crianças jogando no campo de futebol, e durante as férias, todas tinham livre acesso às casas, que ficavam de portas abertas."

Gradativamente, em função da violência, se deu o processo de portas se fechando, a circulação começando a ficar mais restrita, a arquitetura começou a pensar a questão da grade. A ideia era fazer um labirinto feito só de interdições. São 26 itens simbólicos. A instalação, cujo piso é composto por vidros quebrados, motivou um episódio curioso envolvendo o chefe de segurança do Museu Reina Sofia, em Madri, que tinha receio de que as pessoas se machucassem ao circular sobre os vidros e começou a propor intervenções que aumentassem a segurança da obra, como a construção de uma passarela de madeira sobre o vidro, e depois que o vidro fosse feito de caramelo. “Pessoal de agência passa por isso todo dia”, brincou Cama, arrancando risos da audiência.

Respondendo ao questionamento da plateia sobre como a publicidade poderia ser um parceiro das artes, Cildo arrematou a conversa dizendo que tudo depende da cultura, do interesse e da sensibilidade do publicitário. “Pode ser interessante, desde que a publicidade não esteja diretamente envolvida no processo de produção da obra. Vejo mais ela sendo uma aliada na viabilização e manutenção de espaços, encarando os museus e galerias como centros de manutenção e difusão de cultura”.

Mônica Charoux

 

Leia mais em "Diálogo com o incomparável Cildo Meireles"

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