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O espaço é seu

Minhas lembranças do Neil (Ruy Sanches)

09.11.17

Mente afiada e uma agressividade doce. O Neil não tinha papas na língua e era muito divertido. Foi ele quem me deu a oportunidade de ingressar pela primeira vez numa grande agência de propaganda.

Quando li no jornal que tinha saído da DPZ e assumido o cargo de vice-presidente de Criação na Salles, tentei falar com ele. Sabia que ele chegava muito cedo para trabalhar, então liguei antes das oito e ele mesmo atendeu. Conversamos rapidamente e ele me disse para ir lá de manhãzinha, no outro dia. E eu fui. Mostrei a ele alguns layouts de anúncios recusados onde trabalhava. Ele olhou um por um e fez um único comentário: “teu diretor de arte é ruim, hein!” E completou: “olha, desses anúncios ruins que eu tô vendo eu gostaria de ter feito esses quatro aqui”, disse, separando os layouts. Pra mim, foi a glória. Quero dizer que ele batia e assoprava de um jeito que não dava nem pra ficar chateado.

No dia seguinte, a secretária me ligou de manhã e eu comecei a trabalhar com o Neil depois do almoço. Foram alguns anos de muito aprendizado e muitas risadas. Ele se auto intitulou o “Jardineiro da Criação”. Então, ganhou de presente de todos nós uma roupa de jardinagem e um regador de plástico azul que tinha uma margarida amarela no bico.

Quase todos os dias, no final da tarde, ele passava em revista os jobs em andamento. Ele chegava com o regador na mão, entrava na sala irradiando energia e perguntava: E o Play Center aqui, como é que tá?”. Depois dizia: “me fala só produto e o título, e vai rápido porque o São Paulo joga hoje e eu moro longe!”. Aí a gente falava os títulos e ele dizia “não; não; não; esse pode ser; esse precisa dar uma acertada; não; não; não; opa, esse tá bom”...

Quando ele não gostava de nada, pedia para pôr as folhas de sulfite com os títulos datilografados num canto da mesa, pegava o regador e, fazendo de conta que estava regando plantas, dizia mais ou menos assim: tô regando essas ideias para que cresçam e se multipliquem porque amanhã, quando O Jardineiro voltar, elas vão ter muitas mudinhas pra gente poder escolher.”

Caso o as ideias não florescessem, ele sentava junto e escrevia também. E como escrevia. Ganhou o Prêmio Jeca Tatu, por utilizar linguagem popular brasileira na propaganda, e o Hall da Fama do Clube de Criação pelos inúmeros comerciais de TV que entraram para a história da publicidade brasileira. Um monstro.

Me lembro também que o Neil tinha a fama de mão fechada, “lá onde moro tem escorpiões e cobras e eu ando com eles no bolso”. Para desmentir isso, tem uma passagem que custou a ele bem mais que uns sanduíches que me pagava na padaria que havia lá na Borges Lagoa.  Ele me convidou para ver o São Paulo FC num jogo festivo de 25 de janeiro contra o Sevilla do Maradona, no Morumbi. Quando menos esperava ele apareceu com dois ingressos na mão! Eu falei: Ih, vai chover! E não é que choveu mesmo!!!

Era um prazer trabalhar com ele quando não estava irritado com as medidas econômicas da época. Uma vez, passando diante de sua sala ele me chamou. Tava fazendo um frila e queria ver o que eu achava, imagina! Eu disse que aquilo não tava muito com a cara dele e ouvi em resposta: “ah, esse é o Zé Bento que tá fazendo, não o Neil”. Zé Bento, para quem não sabe, é o nome do filho, que ele também adotava nos frilas. Nos Anuários do Clube há alguns anúncios do Zé Bento premiados.

Uma outra vez ele acompanhou seus criativos num boteco que havia na esquina. Os semáforos também já não funcionavam naqueles dias e o trânsito era péssimo no cruzamento para acessar a Av. 23 de Maio. Muitos ônibus, carros, fumaça e buzinas, muitas buzinas. Na porta do boteco, enquanto bebíamos alguma coisa, uma senhora bastante gorda dentro de um automóvel buzinava incessantemente. Então ele virou-se na direção do veículo rente a calçada e lascou: sabia que buzinar engorda?” Aí a madame berrou alguns palavrões e meteu sem dó a mão na buzina enquanto a gente morria de rir. Neil era alegria de viver.

É assim que eu me lembrarei dele: extremamente inteligente, raciocínio rápido, amoroso e muito divertido. Que exaltava o amor que dedicava à esposa e aos filhos. Propaganda pra ele era o Play Center. E eu tive o privilégio de ser escolhido por ele para trabalhar no seu parque de diversões.

Saudades eternas, querido Neil.

Ruy Sanches


Leia mais sobre o falecimento de Neil Ferreira, uma das maiores referências da publicidade brasileiraaquiaqui e aqui.

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