arrow_backVoltar

Coluna do W.O.

Alergia, alergia

28.03.22

Passei a maior parte da minha vida achando que não tinha alergia alguma. Tanto que, anos atrás, quando alguns restaurantes começaram a fazer a pergunta “o senhor tem alergia a alguma coisa?”, inventei uma resposta-padrão: “Tenho alergia à comida ruim”.

Fui descobrir que, na verdade, tinha uma, quando vim morar em Londres em 2017: a famosa alergia ao pólen.

É um tipo de alergia respiratória muito comum, que se manifesta principalmente na primavera, que aqui em Londres começou no domingo, 20 de março, causando sintomas como tosse seca, coceira nos olhos, garganta e nariz. O pólen é o conjunto de grãos que algumas flores dispersam pelo ar, geralmente no início da manhã e no fim da tarde. Essa dispersão também acontece em alguns momentos em que o vento balança as folhas das árvores, que caem, espalhando o pólen e atingindo todos que têm essa predisposição genética.

Nessas pessoas, quando o pólen entra nas vias respiratórias, os anticorpos o identificam como um invasor e reagem a sua presença com sintomas como vermelhidão nos olhos e nariz escorrendo.

Depois que descobri minha alergia, descobri também que, na verdade, eu já tinha algumas outras. Além de à comida ruim, sou alérgico a restaurantes onde o discurso sobre os pratos é enorme, e os pratos minúsculos.

Aqueles onde o maître fala um tempão sobre a genialidade do chef, explica a presença de infinitas e originais reduções, depois um garçom traz uma espécie de pires grande, com meia dúzia de grãos, uma lasquinha de gema de ovo e uma espuminha por cima, que ele chama de paella.

Sou alérgico também a restaurantes que promovem harmonizações em que vinhos razoáveis, de procedências medianas, são apresentados como se fossem fora de série, de procedências excepcionais.

Tenho alergia às mulheres com excesso de maquiagem, perfume, joias, grifes, enfim às peruas, se é que essa expressão ainda existe.

Tenho alergia a homens com cabelos pintados, cinquentões com roupinhas de marcas famosas coladinhas no corpo, correntes no pescoço e relógios espalhafatosos de ouro, prata e brilhantes no pulso direito.

Tenho alergia a marchands que se vendem como mais importantes do que os artistas que representam, fazem discursos infindáveis, explicam nuances das obras que ninguém consegue ver e aproveitam para dizer que, na verdade, o artista é uma pessoa difícil e complicada, que odeia vender seus trabalhos e que, por essas e por outras, nem vale a pena conhecê-lo.

Tenho alergia a técnicos de futebolretranqueiros”, que armam times para ganhar no erro do adversário; a torcidas uniformizadas briguentas e a jogos de uma torcida só. E a jogadores que simulam faltas, fazem cera e parecem passar mais tempo no cabeleireiro que no centro de treinamento.

Tenho alergia a campeões de tênis que se recusam a tomar vacinas e, depois de deportados, insistem em viajar num avião comercial sem máscara.

Tenho alergia àqueles economistas que Elena Landau apelidou de “economistas de palestra”, aqueles que, quando assumem poderosos ministérios, garantem que a Bolsa vai subir enquanto ela desce, que a inflação vai diminuir, enquanto ela aumenta, e que a alta do dólar, na verdade, é ótima porque melhora o nível da frequência da Disney.

Tenho alergia a deputados cafajestes e burros, que se vangloriam das mulheres que não pegaram na Ucrânia.

Tenho alergia a quem defende o ogro negócio, em vez do agronegócio.

Tenho alergia a presidentes da República que exaltam os ditadores do passado, escolhem ministros da Saúde que não entendem de saúde, ofendem presidentes e primeiras-damas de outras nações, enxergam comunistas embaixo da cama, insinuam que vão dar um golpe de Estado, depois pedem desculpas e governam se imaginando no futuro quando não conseguem sequer resolver o presente.

Enfim, tenho muitas alergias além de ao pólen. Tenho a impressão de que, de todas essas, a ao pólen é a menos ruim porque, depois da primavera, ela desaparece, enquanto as outras teimam em continuar o ano inteiro, e algumas até sonham se reeleger. 

Washington Olivetto
Publicitário

washington@washingtonolivetto.com.br

Texto publicado no jornal O Globo

Leia anterior da Coluna do W.O.aqui.

Coluna do W.O.

/