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Festival do Clube 2021

Um mergulho no processo criativo de Jorge Furtado

20.10.21

Desde a década de 1980, quando ganhou notoriedade com o documentário “Ilha das Flores, o gaúcho Jorge Furtado tem se destacado como um dos grandes nomes do audiovisual brasileiro. De lá para cá, ele trabalhou em dezenas de obras no cinema e na televisão. Um mergulho em seu processo criativo foi proporcionado em painel no Festival do Clube de Criação 2021.

O resultado foi um descontraído bate-papo com a diretora e roteirista Dainara Toffoli, Felipe Silva (sócio e CCO da Gana) e Fabio Seidl (diretor global de criação do Facebook NY), com o qual se pode conhecer mais sobre a vida, a trajetória e as criações de Jorge, que hoje concorre ao Emmy Internacional com “Todas as Mulheres do Mundo, produzida pelo Globoplay, na categoria melhor minissérie ou telefilme. Os vencedores serão conhecidos em 22 de novembro.

Em vez de iniciar a conversa pelo lugar comum do início da carreira, Seidl foi direto ao ponto com o assunto que foi central durante todo o encontro: o processo criativo. Jorge respondeu que se baseia em uma história da produção do documentário “Intrepid Shadows”, produzido nos anos 1960 pelo antropólogo Sol Worth sobre o povo Navajo dos EUA.

O diretor e roteirista disse que, no começo da produção, Worth foi conversar com um chefe Navajo que perguntou: "Fazer um filme aqui fará mal aos carneiros?". Ao receber a negativa do antropólogo, o chefe fez nova pergunta: "Fará bem aos carneiros?". Worth também negou, dizendo que é indiferente para os carneiros. A inquirição final do chefe da tribo foi: "Então, por que fazer um filme?".

Embora pareça uma fábula, esta história ilustra o princípio criativo de Jorge, que antes de iniciar qualquer coisa se pergunta o porquê de estar fazendo aquilo. “O processo criativo pra mim começa nessa pergunta.” E afirmou que sua motivação interna é dividir experiências.

Felipe, fã declarado das obras de Jorge Furtado a ponto de ter decorado diálogos inteiros de seus filmes, quis saber sobre os curtas questionadores e sobre a atualidade dos temas abordados no início da trajetória do diretor e roteirista.

O entrevistado do painel respondeu que era um infeliz estudante de medicina quando assistiu ao filme “Deu Pra Ti Anos 70”, de seu conterrâneo Giba Assis Brasil. Ali, ficou encantado ao saber que podia fazer filmes em Porto Alegre. Então, mudou para o curso de jornalismo e passou a trabalhar com televisão.

Ainda sobre este começo de carreira, ele contou que foi demitido da televisão em 1986 e decidiu aceitar os convites que tinha para trabalhar com publicidade, área em que atuou até 1990. “Ganhei mais dinheiro em dois meses do que no resto da vida, até então. Era uma coisa doida, que não tinha comparação com o jornalismo, com nada. Aprendi a trabalhar com melhores profissionais, com outros departamentos. Fazia comerciais sem parar. Aprendi a filmar de tudo. Foi ali que eu virei diretor mesmo."

Em sua história, Jorge revelou que também aprendeu que o cinema é uma forma de expressão coletiva, ideia com a qual concordou Dainara, que trabalhou com o diretor desde o começo. “Tive uma grande estreia, com uma equipe muito forte e um roteiro incrível. Também trabalhei na montagem. Entrei nessa família e estou nela até hoje.”

Falando ainda sobre os temas questionadores e atuais, Jorge comentou sobre o início de sua longa e bem-sucedida parceria com o ator Lázaro Ramos. Eles trabalharam juntos em sucessos como “O Homem Que Copiava” e “Meu Tio Matou Um Cara”.

Tem de fazer filmes antirracistas, mas há várias maneiras. Uma delas é falar do assunto, outra é não falar”, observou, quase enigmático. Para esclarecer, contou mais um episódio de sua vida: “No ‘Rasga Coração’ (filme baseado na peça do dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho) tem dois atores que são negros e tem gente que diz que na peça do Vianinha não diz que os personagens são negros. A isso ele respondeu “mas também não diz que são brancos. Então, por que não posso chamar dois negros pra fazer?”.

De volta ao processo criativo, Felipe perguntou como surgiram os personagens e diálogos de “O Homem que Copiava. O criativo comentou a lembrança que o longa lhe traz. “Foi a primeira vez que vi um protagonista negro em um filme brasileiro. Foi uma experiência muito legal.

Para esse filme, Jorge ficou três anos só escrevendo o fluxo de consciência. “Não tinha história nenhuma, só um garoto que juntava coisa com coisa, ficava lendo várias coisas durante alguns segundos na máquina de xerox. Quando já estava com bastante coisa escrita, aí tinha que fazer o filme, não era um livro.”

Sobre este ponto, Dainara questionou como ele decide qual o melhor formato para uma história. Afinal, estamos falando de um diretor multifacetado, que trabalha com televisão, teatro e cinema.

Versatilidade é uma habilidade essencial, explicou o convidado especial do painel. A decisão depende da necessidade do projeto. Ele deu o exemplo de uma história que escreveu e percebeu que seria impossível filmar: "Alguém vai ter de desenhar, tem de ser quadrinho.”

Os documentários, gênero que deu início à carreira cinematográfica de Jorge Furtado, entraram de volta ao bate-papo. Seidl comentou que “Mercado de Notícias", para ele, é um anticomercial da imprensa brasileira. Com tudo o que está acontecendo na política brasileira, poderia haver uma continuação?

A resposta foi positiva por Jorge considerar essencial o papel do jornalismo em tempos como este. “Devia ter uma parte 2 porque é um filme sobre as fake news antes de a expressão ser inventada. O ‘Mercado de Notícias’ surgiu da vontade de falar que o jornalismo é uma atividade essencial para a existência da espécie humana. Por isso o 'Mercado de Notícias 2' é necessário. A imprensa virou uma ilha de lucidez no meio da loucura, uma muralha contra a barbárie.

Uma das perguntas enviadas pelo público do Festival do Clube para o painel levantou um questionamento interessante: “O personagem é criado para contar a história ou a história é criada para contar a vida do personagem?".

Com a resposta, Jorge mostrou novamente que a versatilidade é a palavra-chave de sua carreira. “Tem personagens que são criados para contar a história, mas eles também conduzem a história. Então, às vezes você não sabe onde a história vai parar. Acho que a gente que escreve tem de escrever a favor dos personagens, de todos eles. A dramaturgia é um baile de máscaras, cada hora você é um personagem.”

A conversa se encerrou com a mensagem de outra participante do público, que ressoou entre os participantes. “Jorge Furtado é um dos artistas mais geniais e lúcidos deste país maluco”.

Danilo Telles

Todos os painéis do Festival do Clube 2021, realizado entre os dias 22 e 23 de setembro, foram transmitidos pelo Globoplay. O evento deste ano foi gratuito.

Reveja a programação completa aqui.

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