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O Espaço é Seu

Encontro de Corpos (Gabi Brites)

03.12.20

Pra mim, o único caminho possível para viver a potência narrativa é o encontro de corpos. Falo de narrativas emocionais, cotidianas — narrativas estéticas sonhadas. Me refiro aqui ao encontro do corpo preto com o corpo branco. Simples assim.

Sou uma mulher branca gay de 40 anos, venho de uma classe média alta do sul do país. Estudei em colégios ótimos, tive aulas de instrumentos, línguas e alma. Fiz muito esporte, até entender que não era a minha vocação. Me exercitava intensamente apenas para atenuar o excesso de energia que sempre tive. Fui criada em uma casa onde trabalhavam 3 empregadas domésticas. Elas moravam 6 dias por semana nos quartos dos fundos. Três pretas. Maria Conceição da Silva - a mãe. Rejane, apelidada Chiquinha – a filha. E Neca  – a outra filha – que eu nunca soube o nome real.

Em Bela Vista, bairro que nasci e cresci em Porto Alegre, corpos negros não são tão vistos. Não circulam, são até raros, mesmo trabalhando em casas de família, mesmo de pé nas calçadas, mesmo nos supermercados. Acho isso estranho, mas por lá é assim.

Eu jogava futebol com os netos da Dona Maria. Era menina, muito boa jogadora e só via graça em disputar com alguém do meu nível, e eles eram os netos da Maria. No colégio, passaram pela minha vida dois pretos. E não eram os netos da Maria. Um deles morreu aos 23 anos, assassinado. Ele era o André, apelidado de Pelé, jogava uma barbaridade. Por isso tinha bolsa. O outro era o William. Ele não jogava uma barbaridade, não a ponto de ter bolsa. Sua mãe trabalhava na cantina. André era apaixonado por mim. Eu, bem bonitinha e boa em esportes. Amiga de todos e com uma personalidade, que hoje entendo, também delicada no sistema – em outras proporções. André, uma vez, me deu um papel de carta que até hoje guardo. Eram dois ratinhos. A ratinha usava uma saia curta, e o ratinho segurava um guarda chuva. O cenário dos ratinhos era um campo lindo e pacifico, com um lindo arco íris fazendo o perímetro do frame do mundo.

Lembro que o André, o André que mataram – não conseguia ir aos passeios. Não pelo dinheiro, pois a instituição ilibada, fornecia alguma ajuda para pagar os custos. Mas, esquecia que o ônibus, nos dias de passeio, saia da escola mais cedo do que de costume. Na ALVORADA — mesmo bairro onde Maria, Rejane e Neca moravam – os ônibus não batiam com os horários de saída do superbus da escola rumo ao conhecimento.

Pelé, dormia lá em casa. Após jogar bola, entrávamos em casa, onde uma mesa farta era posta e servida por suas vizinhas. Ele nunca gostava de sentar na mesa. Eu não entendia. Insistia. Eu sabia que o Pelé gostava da lasanha da Maria  — mãe –, a vizinha dele. Eu ficava falando: Porra Pelé, vamos comer aqui que fica quente o queijo! Hoje entendo o grau de frieza que tinha esse queijo pra ele. Ok, ele me convencia a comer no quarto.

Maria batia na porta e entrava com aquela bandeja perfeita! Já vinha até com o pudim. Eu não entendia o olhar deles quando a fresta da porta abria. Havia algo ali que eu não alcançava. Talvez a cumplicidade por serem vizinhos, talvez por terem a mesma cor, talvez por gostarem do mesmo prato. Sentia algo, que se dissipava rapidamente quando começávamos a jogar bola dentro do quarto. Sim, fazíamos bola de meia com fita crepe e rezávamos para não quebrar nada. Nessas horas tenho certeza que a oração é uma ilusão – quando clamamos por milagre.

William, de pele mais clara que André, nem jogava tanto, mas tinha mais amigos. Também era bom em matemática, assunto que até hoje pra mim é desesperador.

Já tínhamos 12 anos. Ele também não conseguia ir aos passeios. Quando dormia lá em casa não era tão legal, pois não jogávamos bola no quarto. Mas eu amava que ele sentava e comia toda a lasanha e pudim da Maria. Eles não eram vizinhos. Mesmo na mesa sentia aquela sensação da "fresta" do Pelé. Mas, não tinha porta, não tinha fresta, estávamos “todos" sentados à mesa. Ainda assim, não esqueço da virada de pescoço do William – não tinha apelido – acompanhando Maria, que não era sua vizinha, até a saída da sala de jantar para a cozinha.

William gostava de lavar as mãos demoradamente no lavabo. Eu, sem paciência – assim como a matemática nunca foi meu forte –  dava cambalhotas na frente do lavabo, pois já queria nadar na piscina! E ele lá lavando as mãos… o que tanto limpava? William não jogava tão bem quanto Pelé, mas amava nadar, sei que gostava muito, mesmo que a natação lembrasse o seu irmão, que não era o Pelé, mas também foi morto .O que importa é que nadávamos muito, e sem preocupação de quebrar nada. Não rezávamos, e éramos mais felizes.

Maria me parecia feliz, Rejane (Chiquinha) e Neca – que nunca soube o nome – também. Todos éramos felizes. Minhas amigas me amavam, só atrapalhavam quando falavam mal de eu jogar futebol e levar pra casa um preto. Fora isso, eram  legais.

Esses dias mataram um homem preto no supermercado lá em Porto Alegre. Eu falo que a cidade não gosta muito de ver os corpos pretos andando livremente por ai…

Hoje, quando sentei pra escrever, resolvi ir pra dentro das memórias. Minhas memórias sobre o encontro de corpos.

Procurei dentro.

Procurei fora.

Maria morreu.

Chiquinha não estava.

Neca, não soube como procurar.

André…

William…

Hoje não rezo, mas trabalho para que o encontro de corpos seja diferente. Pois as memórias que encontrei dentro de mim me envergonham. E me fazem chorar até mesmo nesse exato momento.

 

Gabi Brites é sócia e diretora da LADYBIRD

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