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O Espaço é Seu

As Anittas de cada agência 

23.12.20

Era para ser uma série sobre música, fama e pegação, mas “Made in Honório”, produção da Netflix que acompanha a trajetória da super estrela Anitta, chama a atenção por suas longas cenas de assédio moral. Gritos, abusos e palavrões pontuam quase todos os episódios e nos levam a pensar: serão características apenas do show business ou já vimos isso nas agências de publicidade? Separei algumas características do comportamento da cantora para fazermos um bingo:

1 – Produtores e técnicos da equipe relatam que a cantora inventa sempre uma confusão na última hora, para depois consertar. Em resumo: vende soluções para problemas que não existiriam se ela não os tivesse criado.

2 – Num telefonema, ela distribui palavrões no atacado e repete: “Vocês dizem que eu sou escrota, né?”. A escrotidão, porém, parece ser ostentada com orgulho, como um sinal de força e personalidade. O velho mito do chefe excêntrico e grosseiro, mas que carrega o trabalho nas costas com seu talento fora da curva.

3 – Durante uma reunião para uma ação de marketing, a cantora rasga ideias e agride os profissionais que criaram as propostas. Não há muito direcionamento sobre como formular uma ativação certeira. Ela apenas não gosta.

4 – O irmão da cantora conta que ela grita, xinga e critica, mas nunca valoriza os acertos de ninguém. A equipe, ao que parece, é sempre pautada pelo medo. Nunca pela gratidão.

5 – Na apresentação do Rock in Rio, a cantora agradece a si mesma pelo sucesso. A declaração foi tratada como exemplo bem-humorado de autoestima elevada. Mas a cada projeto, ela repete que nada teria acontecido se não fosse por ela. Ao que parece, o exército de assessores, compositores, produtores, dançarinos e músicos de apoio não recebe nenhum crédito. Só ela sabe o que faz.

Se você já viu todas as opções acima em uma agência, não se preocupe: todos vimos ao menos uma vez. Assim como o machismo e o racismo, devemos ter em mente que os relatos do colega Flávio Ferri em texto recente (aqui) são exemplos de um problema estrutural. Para cada abusador demitido antes mesmo de assumir o cargo, 50 outros atuam em diferentes postos do nosso mercado. As planilhas têm mostrado comportamentos recorrentes e generalizados, e não casos isolados. Alguns deles revestidos com o discurso do "é o jeitão dele!".

Há alguns anos, a filial brasileira de uma enorme multinacional passou o rodo em Cannes. Entrevistado por um programa de TV, seu chefão afirmou: Não estou satisfeito, não. Vamos voltar para o Brasil e deixar claro que precisamos trabalhar mais”. É inegável que essa mentalidade do chefe Bernardinho produz alguns resultados muito interessantes. Mas quantos casos de depressão, ansiedade, pânico e burnout vieram na esteira dessas excentricidades do líder amedrontador?

E onde está a saída? Difícil dar uma resposta definitiva, mas, neste fim de ano, fui conquistado pelo livro “A tirania do mérito”, do filósofo de Harvard Michael J. Sandel. A obra é uma grande reflexão sobre como a supervalorização do conceito de mérito individual foi levando a enormes fraturas na sociedade. E a outras distorções, claro. Não à toa, os EUA tiveram grande dificuldade para se livrar de um presidente saído do set de “O aprendiz”, um reality-show que mitifica um empreendedor de sucesso e transforma em atração o seu comportamento tóxico.

Não defendo aqui que um VP de Criação homem, branco e educado em escolas e faculdades de classe média alta não deva se orgulhar de seus mais de 100 Leões. Mas, além dos privilégios de cor, gênero e condição financeira, quantos outros fatores contribuíram para suas supostas conquistas individuais? Um bom dupla, bons chefes, bom atendimento, bom planejamento, bons clientes e um bom momento econômico do país também fizeram a diferença. Em resumo: essas conquistas são mesmo individuais? Óbvio que não. O sucesso é sempre coletivo.

Pensando nisso, já faz um tempo que eu parei de ler as fichas técnicas concentrado apenas em duplas e diretores de criação e deixei de achar que atendimentos, clientes e chefes são meros obstáculos para o sucesso individual de um criativo. Ninguém acorda pensando em como vai tornar sua vida um inferno. Bom, alguns acordam sim. Mas, no geral, todo mundo precisa fazer seu trabalho e se importa muito pouco com aquela nossa meta de botar na rua um job proativo que não tem função nenhuma para a marca.

Quando os outros são vistos como inimigos, e não parceiros, a opção é passar como um trator por cima? Deu muito certo para alguns na época em que se relevava até telefone jogado na cara de funcionário, mas tem funcionado cada vez menos no cenário econômico atual. O ambiente excêntrico (e tóxico) dos anos 1990 era tolerado na pujança. No entanto, como disse o presidente do Flamengo na década passada, “acabou o dinheiro”.

Não precisamos de mais mitos, heróis, papas e estrelas. Precisamos de trabalho coletivo, diálogo, acordos, generosidade e, principalmente, objetivos em comum.   

Rafael Simi é redator, jornalista e ator. Sua maior frustração é não ser um ex-participante da Casa dos Artistas

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