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O Espaço é Seu

Demos: a viagem do bichinho frágil (André Faria)

23.07.21

Você entra numas. E esse é o risco de ficar enclausurado no estúdio (ou na sua casa devido ao coronga). Depois de um, dois, dez meses ali dentro compondo, o oxigênio fica viciado. Começam as auto-cobranças, a auto-referência, a auto-exigência, o over-thinking, o over-cooking de ideias.

O escrito de "Lolita", Vladmir Nabokov, por exemplo, entrou numas e achou que tudo o que ele havia escrito era uma porcaria. Foi até o jardim, acendeu uma fogueira e queimou todas as páginas do livro. A sorte foi que sua esposa conseguiu apagar o fogo a tempo, pegar os papéis restantes, reorganizar tudo de novo e publicar o best-seller.

Por isso aí vai um aprendizado que mudou meu jeito de ver/ouvir/pensar música e que fazemos questão de aplicar na Evil.

Quando assinamos com a Skol Music, nosso diretor artístico na época era o Dudu Marote, que produziu as bandas mais legais da década de 90. Dez minutos de estúdio com ele e você sai um artista melhor do que entrou. Na época, tínhamos um disco para lançar, 83 demos e estávamos completamente perdidos. Tínhamos que escolher 10 músicas para produzir. Mas quais? Por que? Como?

Era uma pancadaria danada entre eu e meu irmão, sócio da banda. E foi aí que, do nada, o Dudu nos colocou no seu carro e nos mostrou na prática como se faz. E é assim: demos, ideias e embriões você ouve em movimento, fora do estúdio, de preferência no carro pegando uma estrada qualquer para um lugar qualquer, de janela aberta. O motivo é simples: a música tem que fazer sentido no mundo real, não no pequeno e claustrofóbico planetinha chamado estúdio, cercado de equipamentos caros e/ou raros e caixas super potentes.

Equipamento não faz música, é o ser humano quem faz. E se a demo, aquele bichinho frágil, ainda meio podrinho, fizer o mínimo sentido na estrada, se aquela gravação tosca combinar com as vaquinhas pastando e o ventinho no rosto, se aquela besteirinha de três acordes jogados no gravador do celular bater forte e der aquela vontade de ouvir de novo no caminho, aí sim ela vai pro shortlist. No nosso caso, fomos parar no Rancho da Pamonha e voltamos com oito demos escolhidas, unanimidade.

E o resultado é impressionante. Coisas que você achava especiais, que compôs com aquele instrumento raro ou aquele synth de 50 mil dólares que seus amigos pagam o maior pau viram um nada, sem mojo, uma virtuose boba e vazia de um músico nerd de estúdio (artistas são auto-penitentes). E o mais mágico é a recíproca: coisas que você achava ridículas, idiotas, bobas e risíveis (ah lá, a auto-penitência) viram os hits da viagem.

Despretensiosas, fluidas, desencanadas e sinceras. Ocupam cada centímetro cúbico do carro em total sintonia com a paisagem lá fora. Afinal música é sobre comunicação, sobre conexão. Sobre despertar algo dentro de você. E não sobre plugins, notas ou harmonias complexas.

É por isso que hoje em dia eu amo sair para correr e pedalar. Basicamente para ouvir música em paz. Para ouvir as ideias da Evil, as demos dos amigos ou das nossas próprias bandas. É no caminho que eu sinto se o funk de Avon combina com a menina atravessando a rua, se a demo do novo projeto do Mura combina com a menina beijando a namorada no Ibirapuera, se a locução de Itaú conversa com a simpática mulher do pedágio ou se minha demo podrinha (auto-penitente) bate com o pôr-do-sol na serra de Campos do Jordão.

Música é feita para não-músicos. E não-músicos manjam muito mais que os músicos. Porque são eles que decidem se é bão ou não. Êeeeeee, mundão.

André Faria, sócio-fundador Evil Twin Music

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