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O Espaço é Seu

O TikTok é o novo vinil? (Bernardo Romero)

06.08.21

Eu nasci num bairro do Rio de Janeiro chamado Tijuca. Talvez o único bairro na cidade - e quiçá no Brasil - que apelide seus ilustres residentes com um sufixo pra demostrar localidade: Tijucano. Quem nasceu em Ipanema não vira Ipanemense e nem que nasceu em Copacabana teria o homérico título de Copacabanense, uma palavra estranhíssima que tiraria parte de seu charme e fama mundial.

Devota de Nossa Senhora e mãe de quatro filhas – talvez por isso precisasse mesmo de uma ajudinha lá de cima pra educar tanta gente – minha avó sempre tinha a casa cheia. Minha mãe Angela e suas três irmãs eram conhecidas como as irmãs Malta. Até aí, nada de especial, a não ser pelo fato de que no vai e vem das tardes de “mais água do feijão” do verão carioca, lá pelos minutos finais dos anos 1960, sua casa era regada de notas de violão dos recém-chegados da Bahia Caetano Veloso – ainda desconhecido; e Marina Lima – ainda secretária da Gal Costa. Além desses, apareciam por lá alguns divertidos vizinhos de bairro, como Jorge (na época Babulina, hoje Ben Jor), que dava inesquecíveis aulas de dança, e a inigualável Eliana Pittman.

Meu tão esperado título de Tijucano só viria anos depois, no final dos anos 70. Nove meses depois de ouvir a discografia inteira de Maria Bethânia e de tantos outros habituês daquele bairro – Tim Maia, Tremendão e Roberto. Infelizmente com pouca qualidade sonora devido ao som distorcido dificultado pela falta de acústica dentro da minha piscina privativa – vulgo barriga de mamãe. E foi assim que meu repertório musical foi sendo cultivado na infância e elaborado como uma espécie de TikTok analógico cuja curadoria, atentamente selecionada pelo ouvido treinado de minha mãe, gerava playlists” sensacionais que embalavam nossos domingos regados a muita pipoca, guaraná e, sim, dancinhas.

Arthur, meu filho de 5 anos, tem uma experiência completamente diferente. Nem melhor, nem pior, apenas diferente. Temos a terrível mania de depositar uma quantia enorme de moedas emocionais na nossa memória, frequentemente partindo do princípio que o passado e seus devaneios têm uma importância maior do que a atualidade.

Apesar de fazer o possível para que Arthur seja apresentado para várias bandas, cantoras e cantores que fazem parte da minha cultura sonora, qual não foi a minha surpresa ao perceber que muito do seu repertório musical vem de um aplicativo, o TikTok – pausa para esclarecer que o tal aplicativo é de minha esposa, cujo acesso é supervisionado por ela e pelo que vos fala.

Enquanto eu gastava o que não tinha para comprar um vinil que muitas vezes tinha, no máximo, duas músicas que me apetecessem, o contato que tinha com o mundo daquele artista era de autoria exclusiva do designer da gravadora, que ilustrava com apreço os encartes, capas e sobrecapas da bolacha. E, pensando bem, é uma de milhões de interpretações artísticas para as tais. Hoje, músicas de gente que eu cresci ouvindo como Queen, Elton John e Guns n Roses e que eu descobri há pouco como Megan Thee Stallion e K CAMP, são interpretadas por pessoas do mundo inteiro através de danças, histórias, esquetes, animações e tudo mais que aquela canção estimular.

Talvez ainda tenha que insistir mais um pouco, ou esperar mais um pouco, para apresentá-lo aos clássicos da MPB como algo importante da nossa cultura e da minha história, mas não nego que tenho muito mais a aprender com ele do que vice-versa.

Bernardo Romero, sócio e CCO da agência independente The Bloc, em Nova York

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