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Um Brasileiro em Tóquio

Obrigado, Lu (Erick Rosa)

05.08.21

Obrigado, Lu.
(E a eterna busca pelo Pedrão que não existe longe de Portugal.)

Março de 2007.
Naquela altura, telefone celular era um Nokia.
Mas o modelo era aquele com a primeira versão do jogo da cobrinha que come pixels.
Menciono o querido Nokia pois quando me mudei para Lisboa não foi criado um grupo semanas antes com os brasileiros que estavam a caminho daquela mágica cidade.
Então, em vez de frenéticos emojis num grupo de WhatsApp, o meu primeiro contato com a Luciana Cani foi no lobby do Hotel Ibis na Praça da Espanha, nossa residência temporária em comum quando pousamos em Portugal.
"Olá!"
"Olá!"
"Nos vemos na agência na segunda?"

Do hotel, cada um encontrou o seu canto em Lisboa. Cada um com a sua vida.
E assim foi por alguns meses, anos.
Detalhe importante para o desenrolar desse texto: o casarão da Rua das Flores onde a agência ficava era coisa de livro. Mas livro desses com capa folheada com ouro, ouro, sabe?
E como eram quartos enormes de um casarão, as duplas não se viam com a frequência dos mesões de São Paulo.
Resultado? Tempo, tempo, tempo.
Só fomos mesmo nos aproximar quase dois anos depois.
Mas por ocasião da lógica de uma dupla de criação: ela diretora de arte, eu, redator.
Não éramos dupla, mas trabalhamos juntos em alguns projetos.
Agora, para ser honesto com o texto (e o título alternativo), a dupla, dupla mesmo, nasceu no Pedrão.

Na Garrafeira Alfaia (nome oficial do Pedrão), na Rua Diário de Notícias no Bairro Alto.
Não me lembro quando com precisão. Mas, em algum momento, eu, a Lu e um grupo de amigos, criamos um hábito que virou rotina e depois cresceu para tradição.
Todos os domingos. Todos.

A tradição.
Um copo (ou mais) na inigualável Garrafeira Alfaia, que naquela época era conduzida com maestria pelo mais querido Pedrão.
Mas tinha que ser no domingo.
Uma coisa meio abertura do 'Programa Fantástico' com a Isadora Ribeiro saindo da água de quando éramos pequenos.
Aquela coisa que dava um bonito laço de presente na semana que antecedia aquela gorda taça de vinho que o Pedrão escolhia como quem sabia o peso, a importância.
O tamanho da mesa variava.
Muitas vezes derramava pela rua.
Em outros domingos, ficava tímida porta adentro.
Mas estava sempre lá.

Nos meus dois últimos anos na agência em Lisboa, passamos a sentar na mesma sala.
Dividíamos o trabalho, decisões, vitórias e derrotas.
Não sei se você é fã de futebol. Ou até mesmo se a referência é antiga. Mas vou arriscar.
Trabalhar com a Lu é como estar num replay daqueles em que o Zidane passava a bola sem olhar para o Thierry Henry.
E mesmo quando a jogada dava errada, não tinha reclamação, mas sim aquele sorriso escancarado do Henry.

Me lembro bem que sempre que alguma reunião saía torta, subíamos os dois pela escadaria da Rua das Flores com a má notícia no colo e falávamos um para o outro: "Tá tudo certo, vamos que vamos." Um otimismo desenfreado que levo comigo para todo lado desde então.
Durante esse tempo ficamos mais amigos.
E os domingos e o Pedrão seguiam firmes, fortes e etílicos.

Fevereiro de 2012.
Em algum momento, um encontro desses no Pedrão foi o de despedida:
eu me mudei para São Paulo e ela ficou.
Bom, mas se você já esteve em Lisboa ou conhece a Luciana, duas certezas existem:
você para sempre volta para Lisboa -- e para sempre celebra a sua amizade com ela.
Essa nossa profissão é feita de pessoas.
E não de uma mistura de consoantes e vogais nas portas das agências.
A Luciana não é unanimidade por acaso.

Janeiro de 2019.
Volto então para o título entre parentêses desse texto.
Entre aquele Pedrão de despedida e agora, nove anos.
De lá para cá, a minha São Paulo virou Singapura e, hoje, Tóquio.
A Lisboa da Lu virou Chicago, e hoje, Tóquio.
Lisboa, Tóquio.

Volto mais uma vez para a Rua Diário de Notícias.
Volto para onde o inestimável Pedro Marques servia o seu Touriga Nacional com o maior sorriso já registrado em um ser humano.
Aquele tempo nunca mais volta.
Aquela esquina, aquele tempo, a Leo, aquela equipe incrível, Lisboa -- aquilo não se repete.
[Nem o Pedrão, que hoje serve com o mesmo carinho no seu incrível restaurante 'O Terroso', em Cascais.]

Pulo para o agora.
Depois de tantos anos (muitos), voltamos, eu e a Lu a dividir vinho na mesma cidade: Tóquio.
Mais uma vez, dividimos a mesma agência. A mesma sala.
Muitos projetos. Vitórias, derrotas. Inúmeros "Vamos que vamos." De tudo um muito.
Pausa para uma afirmação quase óbvia: não é sempre que se tem o privilégio de reencontrar uma dupla que é também melhor amiga nessa profissão.
A regra é quase sempre uma supernova.
Cada um para um lado -- e nunca mais próximo.

Bom, e foi em algum "happy hour" da agência aqui em Tóquio que ao sentarmos num bar, pensamos: "Será esse o Pedrão japonês?"
E essa brincadeira se repetiu inúmeras vezes.
Em algumas ocasiões o próprio Pedrão recebia uma mensagem desse lado do mundo que afirmava: "Acho que encontramos o Pedrão do Japão."
Com a frequência que a amizade pedia e a busca pelo novo Pedrão demandava.

Mas nessa semana fomos na última busca. (Mais uma vez sem sucesso.)
Última, pois a Luciana está deixando Tóquio.
Dessa vez, a despedida foi dela.

Volto para o Nokia e o Hotel Íbis da Praça da Espanha em Lisboa.
Penso “que bom que o melhor feature do telefone era o jogo da cobrinha”.
Afinal, se naquela altura existisse algum aplicativo de texto em grupo, nosso primeiro contato teria sido com emojis e não em pessoa.
Volto uma última vez para o Pedrão. Para aquele último domingo.
Lembro da despedida com os amigos da Leo. Lembro de Lisboa.

Corro para o agora, agora.
Para as falhadas (mas divertidas) buscas por um Pedrão nas escondidas ruas de Tóquio.
Mais uma despedida.

E termino com o amanhã.
Com a certeza de que a melhor coisa de não ter encontrado (e não existir) um Pedrão nas ruas do Japão é saber que, em algum momento, essa será a melhor desculpa para fazer uma visita e procurar o mesmo-- onde a Lu estiver.

Boa sorte Lu.
Muito obrigado por tudo.
E que todos os seus dias sejam como os domingos que inspiraram esse texto.
Cercada de queridos amigos, histórias, Touriga nacional e algum sujeito com um coração grande como o Pedrão para fazer você se sentir sempre em casa.
E até a próxima 'Rua Diário de Notícias'.
Aonde quer que ela esteja.

Como os portugueses dizem tão bem, até já.
E como os japoneses repetem genuinamente, arigatô.

Arigatô.
Agosto de 2021.

Erick Rosa, chief creative officer do Publicis Group, em Tóquio

Leia coluna anterior deste mesmo autor, aqui.

Um Brasileiro em Tóquio

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