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Um Brasileiro em Tóquio

Sopa de milho, pizza, terremotos, Lu Cani e muito + (Erick Rosa)

24.02.21

O terceiro lugar. Não primeiro, terceiro.
De longe vejo letras garrafais pintadas com precisão na parede lateral da loja:
"Eleita a terceira melhor sorveteria do mundo."
Leio novamente e confirmo: terceira?
Entro, experimento e minha primeira reação é:
Jesus, se eles falassem que era a melhor eu acreditava.
A segunda reação: o japonês é muito, extremamente, meu Deus, humilde.
Mesmo quando tica todas as caixinhas para ser tudo.
Mesmo quando tem todos os motivos para não ser.

Valores sentimentais 1.
O Francisco, meu filho mais novo, esqueceu a bola de futebol no ônibus a caminho de casa.
Liga aqui, ali, acessa um site, descreve a bola, bola encontrada num depósito bem longe daqui. Uma manhã inteira de domingo dedicada ao resgate da bola.
Mais dinheiro foi gasto em trem, tempo e táxi do que a própria bola vale.
Ou não. Francisco marcou um gol importante com ela.
A bola vale mais. Muito mais.

Pizza em Tóquio.
Certa vez comentei com um amigo que uma das melhores pizzas que eu já comi em toda a vida estava aqui mesmo, em Tóquio. Servem apenas dois sabores: marguerita e marinara.
O dono faz a massa ele mesmo. Ele mesmo comanda o forno. Prepara a quantidade de discos que uma só pessoa consegue fazer e pronto. Acabou a massa, só amanhã.
Google: Seirinkan + Pizza + Nakameguro. Taí uma coisa da qual o terceiro melhor sorvete do mundo é prova: o japonês, quando cisma em fazer algo com precisão, perfeição e afeto, é praticamente imbatível.

Terremotos.
Os menores e médios são tão comuns que, muitas vezes, quando acontecem, vejo colegas de trabalho simplesmente levantarem o copo para não derramar nada sobre a mesa, sem tirar o olho do monitor. Se algo mais forte acontece, noto leves espiadas por cima do monitor e um leve balançar de cabeça, como quem diz "É, também senti, mas passou." E segue o jogo.

Lojas de (muita) conveniência.
É possível comprar uma camisa social de excelente qualidade para uma entrevista de última hora num 7-11. Alugar baterias externas de celular, transformar a loja no seu endereço fixo para receber encomendas da Amazon. E talvez a melhor parte: oniguiris (aquelas bolinhas de arroz envoltas em alga e com recheios de peixe fresco) feitos de hora em hora, que arrisco dizer que passam num teste cego com qualquer restaurante japonês fora do Japão.

Sopa de milho quente em lata no inverno, café gelado em garrafa no verão.
Tóquio é de longe a cidade com mais "vending machines" por metro quadrado no mundo.
O cardápio dos botões luminosos muda de acordo com a estação.

Crianças espalhadas pela cidade.
Em um determinado horário (bem cedo pela manhã e quase fim de tarde), crianças (bem pequenas) uniformizadas brotam pelas calçadas desacompanhadas a caminho da escola ou de casa. Quase todas com um celular especial pré-programado pelos pais pendurado no pescoço para alguma emergência.

Batata doce.
No outono e inverno é muito comum encontrar na frente dos grandes (e médios) mercados, batatas doces inteiras (bem quentes e caramelizadas) sobre pedras em brasa para se comer como se fosse pipoca na saída da escola.

De pé.
Uma alternativa mais barata para comer sushi e sashimi sem pagar uma fortuna é comer de pé. Em vários lugares, principalmente nos bairros mais caros e estações de trem, você encontra os "Standing Sushi". Sem cadeira e sem conversa, mas sempre fresco e em conta.
Já encontrei parecido para comer carne daquelas vacas que escutam jazz e bebem cerveja também.

O Google Maps é legal, o Japonês mais legal ainda.
Se perder em Tóquio é muito comum. Ainda mais com uma pulseira conta passos te empurrando pelas ruas e sem falar (e o pior, ler) a língua.
O mapa do celular ajuda. Mas quando você arrisca pedir informação para um local, ele ou ela irão entortar o dia (ou noite) deles para te apontar para o melhor caminho, independentemente se vocês falam a mesma língua ou não.
Recentemente, um senhor me levou pelo braço até um destino por quase vinte minutos.
Com certeza o caminho com o telefone seria mais curto, mas descobri um bar escondido numa rua sem nome por causa dele.

De cá para cá para cá, para cá.
No início do ano, existe uma apresentação formal dos novos graduados que escolheram e foram escolhidos para trabalharem na empresa. Digo "escolheram" pois é uma escolha quase que para a carreira inteira. Nas festas de fim de ano, existe um já tradicional vídeo que celebra o aniversário das pessoas na agência. Dezembro passado, foram mais de trinta pessoas celebrando mais de 20 anos. Tinha gente celebrando 45 anos. Gente, plural.

Guarda-chuvas transparente.
Quando chove, 99,9% dos guarda-chuvas são transparentes. É tanta gente que deve ter sido a solução para manter a perfeita visibilidade e sincronia do zigzag nas calçadas sem maiores acidentes.

A Luciana Cani e o Tokyo Bits
A Luciana ama ama (duas vezes ama) Tóquio.
Bom, seguindo o título desse texto, eu recomendo o projeto que ela criou desde que chegou aqui. Tokyo Bits é uma deliciosa forma de enxergar o dia a dia em Tóquio.
Com um jeitão querido, colorido e único -- como a Luciana é.
Follow, like, share.
www.instagram.com/tokyo_bits

"No soup for you!"
O JBS Bar em Shibuya é o mais próximo que eu já experienciei com o "Soup Nazi" do Seinfeld.
Pense bem antes de pedir. Não mude o pedido. Olho no olho. Não fale alto. E nunca, sob hipótese nenhuma, estacione na parte do balcão onde ele serve as bebidas. O bar inteiro sabe e fica tenso com qualquer reação do dono do bar. É intenso e tenso. Mas a coleção de milhares de vinis e a música (quase) compensa.

Valores sentimentais 2.
Ano passado, perdi uma câmera com um cartão de memória cheio. Milhares de fotos.
Quase três semanas depois, após ligar para uma dúzia de restaurantes, bares e estações de trem, pergunto numa loja de conveniência (que cheguei por um processo geográfico de eliminação) se eles encontraram a câmera.
Na verdade, mostro uma mensagem em japonês com a descrição da mesma.
Um atendente lê, comenta com um segundo, que chama um terceiro, que gesticula para um quarto e, dez minutos depois, a câmera estava em minhas mãos. "Essa aqui? Encontraram na rua e deixaram aqui na loja umas três semanas atrás." A câmera saiu da loja com apenas um arranhão do tombo da bicicleta. E eu, com os olhos cheios d’água.

Cerejeiras.
Quando o mundo reabrir, se você planejar uma visita, recomendo o mês de março.
Para ver as cerejeiras (lindeza que merece um - dois - Globo Repórter inteiro mas com o Sérgio Chapelin narrando) e evitar o calor do verão que é de fazer omelete na calçada.

Mas, se você só puder vir no verão, tudo bem também.
É aqui que você encontra o terceiro melhor sorvete do mundo.

Erick Rosa, chief creative officer do Publicis Group, em Tóquio

Leia coluna anterior deste mesmo autor aqui.

Um Brasileiro em Tóquio

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