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Parem, antes que seja tarde demais…

Michael Moore, autor do livro Stupid White Man e diretor de Tiros em Columbine, entre outras coisas...

01.10.03


Clubeonline: Tiros em Columbine compara o número de mortos nos ataques de 11/09 (três mil) com o número anual de mortos, nos EUA, por armas de fogo e acidentes com automóveis. O primeiro é quatro vezes maior; o segundo, 14 vezes. E mostra como a reação dos americanos a estes fatos é desproporcional...



Michael Moore: No documentário sobre a Guerra do Vietnã, Corações e Mentes, dirigido por Peter Davis, o General Westmoreland diz: "Os asiáticos em geral, não têm o mesmo respeito à vida que nós temos, no Ocidente." Isso é risível. Há algo muito triste e trágico sobre nós, americanos. Pensamos em nós mesmos como pessoas boas, repletas de ideais, aspirando por liberdade, verdade. E eu, como americano, até acredito que sejamos melhores do que mostro em Stupid White Men e em Tiros em Columbine. Mas algo está terrivelmente errado. Precisamos nos avaliar e reconhecer isso. Barry Glassner, autor de A Cultura do Medo, forneceu boa parte das estatísticas que apresento em meu filme. E são assustadoras.



Clube: Como você aborda isso, em seu trabalho?



MM: Mostro que o problema não são as armas de fogo, em si. Mas que há algo profundamente errado com a psiquê e com a alma dos americanos. Quando converso com pessoas de outros países, descubro, por exemplo, que há um senso de ética que diz que, se uma pessoa adoece ou fica desempregada, todos têm, coletivamente, a responsabilidade de ajudar essa pessoa. Somos todos humanos. Estamos no mesmo barco. E existe uma espécie de ética geral a respeito de como devemos levar as coisas. Mas e os americanos? Aqui a ética é cada um por si. Você caiu? Levanta sozinho. Eu, eu, eu, eu. O que acontece com o outro não me afeta. Foi assim que fui criado. Isso é muito, muito egoísta e egocêntrico. E, no entanto, está tecido na consciência americana.



Clube: Foram estas questões que te levaram a fazer Columbine?



MM: Eu parti do incidente, em Columbine, para investigar o que havia de errado com as armas de fogo. Mas, rapidamente, isso se tornou algo bem diferente, em termos do que eu queria dizer. Passei a querer dizer que estamos no início do Século 21 e precisamos mudar alguma coisa no mais profundo do nosso espírito, porque se somos tão mesquinhos com nosso próprio povo, como trataremos o resto do mundo?



Clube: No entanto, os Estados Unidos projetam essa imagem de prosperidade absoluta, liberdade e justiça para todos.



MM: Sabe qual a parte mais triste da expressão "Sonho Americano"? É que é um sonho. E eles dizem isso, claramente. É estranho que não se fale "Realidade Americana". E sabe por que? Porque apenas para 10% o sonho vira realidade. O resto continua sonhando.



Clube: Quando podem sonhar...



MM: Temos 40 milhões de pessoas vivendo na pobreza nos EUA. Quarenta milhões de pessoas que mal sabem ler ou escrever e não passaram da quarta série. Temos 50 milhões de pessoas sem acesso a nenhum tratamento de saúde. Nenhum. Trabalham mas não têm assistência médica. Como podemos massacrar assim nossa própria gente? A grande promessa dos EUA é que esse país seria uma mistura de povos do mundo inteiro, do melhor de suas culturas. Mas não aconteceu assim, e ninguém discute isso.



Clube: Os americanos desconhecem sua própria história?



MM: Completamente! Não falamos sobre a verdadeira história do nosso país. Porque boa parte dessa história é sobre pessoas que vieram para cá como escravos. E foram discriminados. Os irlandeses chegaram e em seguida apareceram os cartazes "Nada de irlandeses". Os chineses eram essencialmente trabalhadores escravos. Houve o genocídio dos nativos. Não sabemos e não falamos sobre nada disso. Só falamos sobre o sonho americano.



Clube: O que sente por seu país?



MM: Eu amo este país. É importante que diga isso. Há muitas coisas boas na América e tenho grande apreço por muitas qualidades americanas. A simplicidade, a expansividade, o que há de genuíno nos americanos. Só queria que fossemos um povo melhor.



Clube: Neste contexto, como você vê seu trabalho?



MM: Como minha pequena guerra particular, contra a ignorância. Minha pequena campanha particular, contra Bush. Quero que as pessoas leiam Stupid White Men e saiam debatendo, conversando, fazendo perguntas. Falem de coisas que ignoraram durante muito tempo.



Clube: E como você vê a reação do resto do mundo? Os Estados Unidos não são exatamente a nação mais popular do mundo, neste momento.



MM: Eu imaginei que as pessoas, mundo
afora, fossem usar Tiros em Columbine, ou meu livro, como uma tradução de sua antipatia pelos Estados Unidos. Mas não foi isso que aconteceu. As pessoas vêem este filme como um aviso, um alerta. Elas compreendem que se os políticos de seus países começarem a destruir a rede de segurança social, que protege o povo, se começarem a encolher os benefícios mínimos a que a população tem direito, se reduzirem seu senso ético ao nível do nosso senso ético (como está acontecendo na Austrália, na Grã Bretanha - desde os tempos de Thatcher -e na Itália), o que todos vão ver é o aumento do número de assassinatos e de crimes com armas de fogo.



Clube: Então seu filme leva as pessoas a avaliarem seus próprios países?



MM: Tenho certeza. Fiquei felicíssimo quando a Alliance Atlantis (empresa canadense que co-produziu Tiros em Columbine) disse que meu filme era o campeão de vendas internacionais da empresa. Felicíssimo porque este filme pode mesmo dizer às pessoas, mundo afora: parem antes que seja tarde demais. Vejam o que acontece lá na frente. E já pode ser tarde demais para nós, americanos.



Clube: E depois do alerta e da indignação? O que deve acontecer para que as coisas mudem?



MM: Bom, se duas ou três pessoas começarem a ser mais solidárias e menos egocêntricas, por causa do meu trabalho, e esses dois se transformarem em dez, em cem... É assim que essas coisas acontecem, não é? Não foi assim que as pessoas começaram a usar jeans? Alguém achou que isso era cool e um monte de pessoas concordou. Não tenho expectativas muito elevadas, mas adoraria descobrir que meus compatriotas fizeram algo bom, de verdade. O filme está provocando discussão, estimulando o debate. Stupid White Man foi o livro de não-ficção mais lido dos EUA, em 2002. Isso já é incrível. Um livro que não é de direita, que não é pró-Bush, que não ensina como se tornar milionário, e critica o universo americano. Isso me dá um pouco de esperança.



Clube: Você se vê prioritariamente como um cineasta?



MM: Sim, claro. Se eu quisesse simplesmente fazer discursos me candidataria a algum cargo público. Se quisesse fazer sermões, seria um pregador. Escolhi ser cineasta e para mim o importante é ter certeza de que se você me der duas horas de seu tempo, vai se divertir, rir, chorar e, espero, vai pensar. Não quero que você saia do cinema deprimido e desesperado - isso seria paralisante. Quero que saia zangado, porque a raiva leva à ação. Meu primeiro objetivo é fazer filmes que eu mesmo gostaria de ver.



Clube: Você tem tido vontade de ir ao cinema, com freqüência?



MM: Não, isso é cada vez mais raro, na verdade. O cinema está piorando. Eu faço filmes e adoro ver filmes, mas o cinema está muito ruim. A cópia, da cópia, da cópia. Será que conseguirá ficar pior do que está?



Clube: Muitos cineastas são contrários à idéia de misturar consciência política com seu trabalho no cinema...



MM: Bem, eu prefiro ser socialmente responsável, e acredito que estou fazendo um trabalho responsável. Gostaria que mais diretores pensassem dessa forma. Assim, talvez, o cinema americano não fosse tão ruim. Acredito que somos todos responsáveis por nossas ações e temos todos que encarar isso, de algum modo. Quando Bush bombardeia o Iraque, sou eu quem bombardeia o Iraque, porque ele está fazendo isso em meu nome, com o dinheiro dos meus impostos. Por isso, tenho o dever, na minha consciência, de me opor a isso, de tentar por um fim a isso.




Esta entrevista foi realizada por Ana Maria Bahiana, em Los Angeles, e organizada pela Hollywood Foreign Press Association. O livro Stupid White Man foi lançado, no Brasil, pela editora W11/Francis, que nos proporcionou a publicação desta entrevista.



A editora acaba de fechar contrato para a publicação do novo livro de Moore, "Dude, Where is my country?" (Cara, cadê o meu país?), cujo prefácio será feito pelo autor, especialmente para a edição brasileira.


Parem, antes que seja tarde demais…

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