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por: Andre Morales*
Peguei meus passaportes, me informei sobre as provas de admissão da Escola de Cinema, em Munique, pedi as contas e, em três meses, estava sentado num avião, viajando para Bremen, na Alemanha.
A prova de admissão da escola consistia em uma pesquisa sobre o tema exílio, do ponto de vista humano.
Exil, ein menschliches Problem.
Pediam que fosse feita uma pesquisa sobre o assunto, para depois escrever um roteiro, escolher a cena principal do filme e produzi-la. Em dois meses.
Vim pra Suíça, pois a Alemanha daquela época, logo após a queda do muro, parecia uma grande repartição pública, onde ninguém sabia quem mandava, quem obedecia e, principalmente, quem trabalhava e porque.
Além do que, a Suíça tem tradição nessa área e é do tamanho da Ilha de Marajó.
Comecei pelas fronteiras, entrevistando os agentes aduaneiros, primeiro contato de um exilado com o país. Depois fui aos aeroportos e repeti a dose.
Esse era um tema muito especial para quem também havia decidido exilar-se. E como eu não pleiteava ser asilado político, nem econômico, aprendi muito com a estória.
Durante a pesquisa, descobri que para ter status de asilado o cidadão passa por várias triagens, até descobrirem a real identidade e problema do requerente.
Se o motivo do seu exílio for político, bem-vindo, mas explique-se melhor, caso contrário, sentimos muito, babau, bye-bye.
Em sua maioria, os que batem às portas dos países ricos não trazem passaporte, nem nada que os identifique (os refugiados políticos, porque tiveram que deixar suas pátrias em condições difíceis; os econômicos, por saberem que assim dificultam o trabalho das autoridades em classificá-los).
Visitei um centro de triagem e conversei com um angolano, que se recusava a ver a luz do dia. Ele passava o tempo todo na cama e me contou que sua vida não fazia mais sentido depois de abandonar a luta no seu país. Desde então, recusava-se a admitir que a vida continuava.
Ao contrário de alguns paquistaneses, que jogavam bola no jardim e davam a impressão de estar numa colônia de férias.
Uma cidadã da ex-Iugoslavia custou a acreditar na minha estória de cineasta e só dizia: "Iugoslavia good, Switzerland good, everything good".
"Good God", pensei, e fui conversar com uma psicóloga. Como distinguir asilado político de exilado econômico? A explicação parecia fazer sentido e baseei meu roteiro na sua tese: exilado político tem culpa por haver abandonado sua luta, não vê futuro, só vive o passado. Exilado econômico pensa ao contrário: o passado não existe, só existe o futuro, não existe culpa, só esperança.
Escrevi o roteiro, escolhi os atores e rodamos a cena principal.
Depois, preenchi toneladas de fichas de inscrição alemãs, explicando porque um publicitário quer deixar de ser publicitário e virar cineasta e porque na Alemanha. Contei sobre minha paixão por Wim Wenders - que, por sinal, lecionava na escola -, por Werner Herzog, por Rainer Fassbinder e inclui algumas citações da biografia de Robert Capa, que carregava debaixo do braço como se fosse minha bíblia.
Como não podia deixar de ser, acabei de escrever meu trabalho na última hora e corri pro correio, em Zurique, para enviar o material, selado e carimbado com a data limite para a inscrição. Chegando no correio, encontrei uma fila de 3 pessoas isso é fila por aqui e observei um senhor de seus sessenta e tantos anos, vestindo terno azul, gravata, flor na lapela, de pé junto ao guiché, ladeado por duas sacolas de compras de supermercado.
Quando chegou minha vez, um helvético de quase dois metros e grisalho, atrás do balcão, me explicou que sentia muito, mas não poderia me atender, pois o seu colega, que cuidava da caixa de selos, teve uma emergência e precisou correr pra casa. Estupefato, contei-lhe minhas agruras, expliquei que o carimbo tinha que ser daquela data, senão minha carreira de Wim Wenders terminava ali. Aí o tal cidadão de terno azul, parado agora ao meu lado, interveio e perguntou de onde eu vinha. Quando lhe contei que era do Brasil, ouvi o clássico comentário "Cafuringa, Pelé e Ziriguidum". Ele, então, tentou explicar ao funcionário do correio, seu amigo Franz, que se tratava de uma situação grave.
Para ser simpático, dirigiu-se a mim na minha lingua pátria, aquela que se fala na capital (Buenos Aires) do meu país. Disse que a solução para meu caso seria comprar selos na máquina instalada do lado de fora do posto e retornar ao balcão para receber o famigerado carimbo, do qual necessitava mais do que nada, naquele dia.
Dito isso, lá fui. Mas constatei que a máquina de selos estava pifada. Na Suiça! Retornei ao guichê e, depois de escutar piadinhas sobre minha destreza e desenvoltura, voltei ao automático, com o senhor em azul, cujo nome não esqueço mais: Serafin Wyler.
Ele constata, estupefato, que na Suiça nem tudo é exatidão.
Enquanto isso, Franz encerrava seu expediente.
Num último rompante de boa vontade, ainda escuto Franz sugerir que fossemos à estação de trem mais próxima, onde poderíamos tratar de resolver "nosso" problema. Afinal, ali havia outra máquina automática de selos.
Mas o tupiniquim aqui não acreditou muito nisso.
Insisti e recebi a explicação que jogando a carta no correio, ainda naquele dia, o carimbo seria o do dia.
Como lá na minha terra não tinha nada disso, fiquei imaginando uma engenhoca, dentro da caixa de correio, que carimbava o envelope no momento em que esse atravessava a abertura.
Mineirices da minha cabeça de carioca. Saimos do correio, Serafin e eu.
Ele se dirigiu a um carrinho de bagagem, estacionado junto ao correio.
Subiu, junto de suas compras, e me pediu que o empurrasse até a estação de trem. Não acreditei no que ouvi. Passou pela minha cabeça, como um raio, a estória do velho, do burro e do menino. Comecei a me imaginar atravessando a estação de trem, empurrando aquela instalação humana.
Decidi me afastar dele, enquanto o tom da sua voz e os impropérios em espanhol diminuiam de intensidade.
Na estação, encontro a caixa de correio e o automático de selos, mas vejo que a máquina só aceita moedas de 50 centavos. Tenho duas e preciso de mais vinte. Olho para a última banca de jornais aberta e me dirijo ao atendente, que está arrumando as revistas antes de fechar o estabelecimento.
Pergunto se pode me ajudar. Sua resposta foi contundente e clara: "Tenho cara de banco"?
Volto ao automático de selos. De repente, escuto o barulho do motor de uma Mobilete (será que ainda existe isso no Brasil?). Vejo Serafin dirigindo na minha direção. Achei que era um sinal de Fellini. Ele freia do meu lado e me passa um pito. Explica que sua perna não esta nada católica e que por esse motivo pediu que o empurrasse. Pergunta se pode fazer algo por mim e explico o meu dilema. Ele pergunta se tenho dinheiro. Dou uma nota de 20 francos pra ele e penso que me livrei da nota e do doido. Mas não foi assim. Em dez minutos Serafin retorna com 20 moedas de cinquenta centavos e meu troco. Colo os selos e forço o envelope para dentro da caixa de correios, pois ele estava gordo demais para a abertura. Não ouço nenhum barulho de geringonça funcionando dentro da caixa. Estranho. Acabo convidando Serafin para um café.
Volto para casa, cambaleante.
Seis meses depois, sentado na minha mesa de diretor de criação, numa agência de Zurique, recebo pelo correio o envelope intacto, enviado pela Escola de Cinema de Munique, com uma carta, explicando que sentiam muito, mas que o projeto havia chegado um dia depois da data final de inscrição.
Moral da estória: publicidade é como malária. Uma vez que se pega, volta sempre, mesmo que durante algum tempo a gente se sinta saudável. E mesmo que você viaje até o final do mundo!