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Criado-Mudo

Três anos depois, um texto

24.07.07

Fazia algum tempo que não abria a gaveta do meu criado-mudo. Ao abri-la, encontrei o texto a seguir, que escrevi em 2004. Ah, havia algumas formigas lá dentro, também.


"Replantar o jardim é o que eu deveria estar fazendo, mas me perco revirando a terra. Umas minhocas passam pelos meus dedos. Vou seguindo-as até que elas se enfiem novamente nos seus buracos e eu as perco de vista. Gosto também de encontrar aqueles tatuzinhos bola, dou uns petelecos só pra vê-los virar bolinha, depois deixo-os caminhar em paz. Porque também não sou assim, de judiar deles, entende? Quando encontro cacos de vidro, fico imaginando quem bebeu naquela garrafa. Quando os cacos são de tijolos velhos, fico analisando os musgos. Sempre há formigas, daquelas pequeninas, marronzinhas. Essas nem picam, então deixo que elas passeiem pelas minhas mãos. Não digo a elas que não as vejo, mas finjo ignorá-las e assim desfruto do prazer solitário de senti-las passeando por mim.


Às vezes, esmago uma ou outra sem querer. Quando me ajoelho, já sei se choveu. Sinto a terra fria. Ela é fria, sabia? Gosto de cheirá-la e distingui-la, mas não chego a comê-la como Erêndira, que também comia placas de cal despregadas das paredes velhas. Prefiro a massa podre das quiches!


Geralmente, páro antes de terminar o serviço, quando a terra já sujou por debaixo das minhas unhas e penso que isso vai dar um trabalhão pra limpar depois.


Não sou do tipo que usa luvas e acha bonito sujar a roupa.


Gosto mesmo das incontingências da umidade, do mistério que posso encontrar escarafunchando.


Quando chego perto das raízes, sempre tateio com mais cuidado, pois aprendi que não se pode quebrar a ponta de uma raiz. Isso pára a planta! Gosto de imaginar que aquela raiz é uma copa enterrada, invertida, e gostaria de ter um jardim assim, desnudo, com as raízes expostas, tendo que cavar para colher os frutos.


Por vezes, quando enfio as mãos na terra, alguns dedos encontram facilidades, deslizando em buracos que já existem, e fico com medo de insistir e encontrar algum bicho lá no fundo, sei lá, né?


Lembro que já enterrei filhote de pardal pra esperar que ele virasse esqueleto, e depois me esqueci e nunca o encontrei. Tomara que outra criança tenha escavado e encontrado a caixinha de fósforos.


Um filhote de pardal cabe numa caixa de fósforos? "
 
Moa Ramalho
sócio e produtor executivo da Zulu Filmes


Comentários

LUCIEIDE OLIVEIRA - "..um jardim assim, desnudo, com as raízes expostas, tendo que cavar para colher os frutos.". Nossa, isso dá margem pra tantas analogias! Você "desenterrou" um lindo texto, Moa! Continue cavucando suas coisas... (rs)


Alvarez - o cara é irmão gêmeo do Murilo Lico?


Paula Rezende - Olá, Tenho textos muito parecidos em meu blog! Visitem! Gostei mto de encontrar alguém com uma visão tão parecida com a minha! http://taotaodistante.blogspot.com/ Obrigada, Paula.


 André - pode crer..o moa ta a cara do murilo..agora o murilão vai ter q escrever o texto dele, pra gente ver que ele é outro.


Lu Baiana - ...esse é o Moa....pensamentos infinitos perdidos no criado-mudo..e q emergem a superfície para o nosso deleite....Obrg tio!!! ADOREI!! e vamos pra praia catar minhoca e formiga..rs


 fafi - o cara é um escritor. tem talento. parabéns!


Angelo - que texto mais bonito...


Jefferson Airplane - Moa Ramalho Lico. Texto duka. Vou comentar com seu irmão, o Murilão.


 marcelo diniz - Grande Moa. Belo texto. Que percepção aguçada das coisas simples (e talvez as mais importantes) da vida. Ainda bem que você resolver dar voz a esse criado-mudo, hein? Saimos todos ganhando. Parabéns.


 renato - Sempre que leio um haikai fico meio frustrado por ele acabar logo, como quando a gente comia Nucita ou tomava Yakult e eles pareciam muito pouco. Me desculpem os puristas, mas o Moa matou minha vontade de ler um haikai comprido. Ficou a vontade de terra e de quiche.


Zé Eduardo - Moa vamos fazer uma locução e uma trilha prá esse texto? parbéns Abs Zé da Angels


- eu conheço o Murilo


jussara felix - fico pensando o que sera que eu represento neste jardim?? talvez o esqueletinho esquecido no meio de tanta terra....continue com o trabalho sujo!!! tambem gosto de jardinagem. ju

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