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Festival do Clube de Criação 2017

Guto Graça Mello: 'Que haja mais inventividade pela frente'

25.09.17

Guto Graça Mello, 69 anos. Produziu mais de 400 discos, de João Gilberto a Sandra de Sá. Mais que isso: presenciou e soube contar, em um bate-papo informal conduzido por Simoninha, algumas das histórias mais inacreditáveis da cultura popular brasileira, ambientadas em lugares como os estúdios da Som Livre, um hotel em Tóquio e até em um ônibus cacareco no deserto mexicano. Em sua carreira, brigou com um dos percussores da bossa nova, colocou sua voz no lugar de uma estrela da MPB, fugiu do presidente de uma república latina em plena final da Copa do Mundo, e salvou Tim Maia de um segurança.

Graça Mello entrou para a Globo antes de ela ser fundada. Fez o teste de Milton Gonçalves, o primeiro ator da emissora. Junto com Boni, começou a escrever a primeira página da televisão brasileira. “Naquela época, era tudo muito intuitivo. Tínhamos de inventar, arriscar, pois ninguém sabia de nada como fazer TV”, relembrou.

Essa lógica do risco representa um contraste com os dias atuais. Em uma reunião recente, focada no marketing de um artista novo, um profissional questionou se o cantor se parecia com alguém. “Sai da reunião e mandei todo mundo se f...”, brincou Melo. “É uma tendência da indústria arriscar menos e copiar alguma coisa. Recebo muito material de artistas, mas há muito pouca coisa com originalidade. Busca-se sempre algo parecido com o que já faz sucesso. Vivemos na era da repetição, e espero que isso acabe. Que haja mais inventividade pela frente”, afirmou.

O entrevistador Simoninha concordou com a visão de Graça Melo. “Temos de estimular quem vai além e ousa. Antes, a música já tinha a presença do produtor, mas sempre com respeito à essência do artista, que tinha uma assinatura clara”, acrescentou.

As loucuras de Guto Graça Mello

O produtor musical e de televisão contou histórias impagáveis durante a apresentação no Festival do Clube de Criação. Algumas, inacreditáveis. Mas, com bom humor e  ele jura que são verdadeiras.

Aventuras com João Gilberto

Guto Graça Mello foi convidado por André Midani para fazer o disco que reuniu João Gilberto, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Maria Betânia. “Amo João, o conheço desde menino. Mas, às vezes, ele é sórdido. Eu sabia que ele iria aprontar”, contou. Após alinhar os quatro microfones e garantir que ninguém teria mais destaque que o outro, apenas João não gostou - os demais aceitaram a proposta. Mesmo com esse entrevero o disco foi para frente, um grande sucesso, embora com apenas seis faixas. "Seria impossível gravar mais que isso com João no projeto" , explicou.

Em seguida, Graça Mello foi aos Estados Unidos, gravou com uma orquestra arranjos para João. Ao voltar, ouviu o pedido para refazer “All of me” e aumentar o som do saxofone, no caso, tocado pelo mestre Tom Scott. Ambos ficaram até cinco da manhã tentando achar a mixagem certa. Após mais uma intervenção do cantor e compositor baiano, Mello ficou tão irritado que o ameaçou de agressão. A cadeira de João virou para trás e o mestre da música caiu de pernas para o ar, gritando: “Seu magro safado”. A música acabou sem a inclusão do sax.

A "voz" de Rita Lee

Em seu livro, Rita Lee declarou que teve discos ruins dos quais sequer deseja lembrar. Talvez um deles seja “Refestança”, um álbum ao vivo com Gilberto Gil. “Não havia a cultura de gravar ao vivo. Fizeram uma grande turnê e não gravaram nada. Quiseram fazer tudo no último espetáculo. Microfonia, ruídos, tudo de ruim aconteceu", confidenciou. "Mas tinha de lançar o disco”, emendou.

Ao lançar o disco, tomou esporro de Rita. “Ela falou que a voz de uma das músicas não era dela. E era verdade. O vocal dela ficou ruim. A voz era minha, imitando Rita”, afirmou, para gargalhadas gerais da plateia do Festival do Clube.

Fim de uma era

Dono de uma história sem igual na música, Graça Mello vivenciou a transformação da indústria fonográfica no Brasil. E testemunhou momentos que hoje dificilmente seriam concebidos. Um desses episódios aconteceu com a Som Livre, que não tinha orçamento determinado, como relembra o produtor. A empresa investia em talento, em risco. E fazia acordos com outras gravadoras para colocar músicas nas novelas da Globo.  Mas chegou a um ponto em que essas costuras geraram um contratempo. "Do top 10 era tudo nosso. O João Araújo (que havia fundado a Som Livre) me chamou e disse que estávamos com problema. Não podíamos tirar sempre o primeiro lugar", rememorou. Iniciava-se uma era em que as estratégias de marketing passaram a ser definidas por novos perfis de profissionais. "Estava ali brincando de fazer música e arriscando, sem marketing para me impedir", disse. Pedindo "desculpas para quem é do marketing", Graça Mello concluiu que "a Som Livre acabou ali”.

O plim plim!

Outra marca musical de Graça Mello tem a ver com o famoso “plim plim” da Globo. A marca sonora foi pensada para que fosse alta o suficiente para ser audível a longas distâncias. A pedido de Boni, ele e Luis Paulo Simas (ex-integrante da mítica banda Vímana) chegaram à soma de frequências capaz de transferir aquele “sound branding” aos ouvidos do máximo possível de pessoas. Com mais TVs ligadas na Globo, o efeito para quem está andando nas ruas é o que muitos já experimentaram: ouvir vários “plim plim's” ao mesmo tempo.

Tim Maia em apuros

A forte imagem de Tim Maia esconde histórias em que ele ficou no papel de vítima. Nos estúdios da Som Livre, um músico uruguaio recebeu reclamações de um determinado arranjo direto de Tim. Mas o uruguaio não era do tipo de ouvir calado. “Havia um canteiro de obras do lado do prédio. O sujeito deu uma surra no Tim, jogou no carrinho de pedreiro e o levou até a rua”, revelou Graça Mello.

Outro momento tenso: o produtor foi chamado aos estúdios para apartar uma briga. Ao chegar, viu um segurança imenso segurando Tim no alto, com apenas uma mão, pelo gogó. Dizia educadamente: “seu Tim, não me faça fazer nada com o senhor”.

Walter Mercado, a mulher do presidente e a fuga do México

No bate-papo entre Guto Graça Mello e Simoninha, ficou para o final a história mais mirabolante. Ela ocorreu em 1970, durante a Copa do Mundo. Em uma das festas frequentadas por tipos como Walter Mercado (do famoso “Ligue djá!”), um dos integrantes do seu grupo de músicos foi convidado a conhecer Sarah, mulher do então presidente do México. Não era a primeira-dama, mas gozava de imenso prestígio junto ao mandatário da nação. O brasileiro e Sarah se tornaram íntimos, ao que tudo indica. Na último apresentação do grupo de Graça Mello, foram todos tomar champanhe na casa dela. O encontro se repetiria outras vezes. “No dia da final da Copa, ela aparece com seu Plymouth conversível falando: 'Fujam do país!", relatou Graça Mello, entre risos da plateia. 

Poderia ser uma cena de um filme de Almodóvar, mas havia gente brava de fato com os encontros entre o brasileiro e a mexicana. "Não adiantava ir para o aeroporto, porque o presidente estava atrás de nós. Tomamos um ônibus para Tijuana", contou. Era um ônibus que apenas os locais costumavam tomar, mas era o que havia para eles. Foram 48 horas de viagem, atravessando o deserto de Sonora, comendo chili, único alimento que havia, e tomando leite, a bebida que encontravam no trajeto.

Na fronteira com os Estados Unidos, os brasileiros foram barrados. Sensibilizados pela história, e com risos estampados no rosto, os norte-americanos ajudaram o grupo a contatar o cônsul brasileiro que resolveu o problema. “Se voltássemos seríamos mortos mesmo”, assegurou Graça Mello.

Felipe Turlão

Festival do Clube de Criação 2017

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