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O Espaço é Seu

Let it Brief (Gustavo Mayrink, da Talent Marcel)

06.12.21

Let it Brief - Notas aleatórias sobre uma incrível jornada criativa

Contrariando as estatísticas de que quase nada acontece no início do ano, a equipe de criação estava a postos para uma reunião de trabalho logo no segundo dia de janeiro. Com alguma dose de ironia desejaram uns aos outros feliz Ano Novo e repassaram, ainda sonolentos, o próximo desafio do time: criar uma campanha grandiosa e inovadora em um prazo relativamente curto. Em contrapartida, dispunham de um orçamento generoso e muito prestígio no mercado.

Apesar da presunçosa comparação com alguns aspectos do meio publicitário, falar de “Get Back”, série em três partes da Disney + sobre a gravação do último disco dos Beatles, é uma tarefa fascinante. Poucas obras conseguiram captar tão magistralmente o processo de criação artística e as relações humanas quanto o documentário de Peter Jackson, premiado diretor da saga "O Senhor dos Anéis".

A ideia original, de 1969, era reunir a banda para compor e gravar um disco ao vivo, algo que não acontecia desde 1966 quando pararam de fazer turnês e se dedicaram apenas aos trabalhos em estúdio - o que teoricamente não exigia que se encontrassem para gravar juntos. E foi justamente a falta de momentos de criação coletiva que levou Paul McCartney a lançar o desafio ao grupo: criar 14 músicas novas em duas semanas e tocá-las para uma plateia.

As primeiras sessões do reencontro foram frias. Nitidamente desentrosado, o quarteto parecia desconfortável em se expor para as câmeras em um ritual normalmente mais intimista. John Lennon estava incomodado com a presença de dois amigos Hare Krishna de George Harrison, embora ninguém da banda tenha se queixado, pelo menos publicamente, de sua namorada, Yoko Ono, que passa a maior parte do tempo a seu lado tricotando e fazendo caligrafias japonesas.

O estúdio era muito grande e prejudicava a acústica. George levou alguns choques enquanto Paul esbravejava sobre a irritante microfonia. A inacreditável falta de planejamento da maior banda de rock da história se dava, principalmente, pelo fato de não terem um mentor desde que o lendário empresário Brian Epstein morreu em 1967. Coube a Paul, o mais obstinado do grupo, assumir esse papel para tentar colocar um pouco de ordem na casa.

Ele pedia mais compromisso e envolvimento, em especial de John, que não decorava as letras e evoluía pouco nas melodias, chegando a cobrá-lo com veemência. Recebeu a resposta na mesma nota: “Sob pressão, Paul, você vai me ver no meu melhor”.

Essa constante tensão reverberava pelo estúdio misturada aos riffs e acordes que pareciam embolados. Paul tentava estimular a banda a partir de uma premissa básica, mas muitas vezes relegada. Ele queria que os integrantes simplificassem as coisas para só depois, com uma base já estabelecida, passassem a complicá-las. “Nós só precisamos ser criativos”, diz, antes de emendar um dos momentos mais sublimes da série ao criar a versão definitiva de “Get Back”, uma sequência de três minutos de pura genialidade e perseverança.

Essa é uma constatação primordial que o documentário provoca, a de que criação artística e inspiração não combinam com disciplina, método e rigor. “Silêncio! Gênios criando”, cairiam placas literais e imaginárias pregadas ao longo da história.

Outro aspecto importante diz respeito à validade de uma ideia. Quando o processo criativo estava truncado e o tempo corria, a banda recorre a composições antigas que não foram gravadas para tentar reaproveitá-las. Umas evoluem, outras são descartadas e algumas são dissimuladamente engavetadas. Acabariam entrando em futuros álbuns solos dos integrantes que já previam o divórcio do grupo, assunto tratado com o mais fino sarcasmo inglês: “Se a gente se separar, quem é que vai ficar com as crianças?”, debocha John. A despeito da rabugice inicial, Lennon se sai bem no papel de entertainer: dança valsa com Yoko, sapateia flamenco e protagoniza cenas que parecem saídas de um quadro do Monty Phyton.

O humor e a camaradagem, apesar das constantes rusgas, foram elementos fundamentais para a evolução das gravações de “Get Back.

Por mais que John e George já dessem sinais de que estivessem com a cabeça em novos projetos autorais (ambos abandonaram as gravações e depois retornaram), parecia haver um pacto para que aquelas sessões se tornassem históricas.

Isso fica evidente quando as novas músicas começam a ganhar forma e os quatro, enfim, se encontram na mesma sintonia para fazer o que mais sabem.

A tensão se dissipa e o que vemos é uma banda plenamente entrosada no ápice do processo criativo. A afinidade entre Paul e John é emocionante. Eles vão se complementando durante as composições e trocando olhares de admiração mútua. Em uma cena emblemática, George ajuda Ringo a compor “Octopus’s Garden”.

Ainda não assisti o terceiro e último episódio da série. Além de querer aproveitar ao máximo cada cena dessa experiência única, sem pressa, acabo de receber um briefing para daqui a duas semanas. A marca é desconhecida, a verba não é das maiores e eu não tenho o menor talento para participar de uma reunião no segundo dia de 2022. Deixe estar.

Gustavo Mayrink, diretor de criação e conteúdo da Talent Marcel

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