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O Espaço é Seu

Que tragédia precisa acontecer para voltarmos a ser vistos e ouvidos? (Jessica Queiroz)

24.10.25

Boa parte da nossa concepção de cinema, no Brasil, nasce como a frase icônica de Glauber Rocha: “Uma câmera na mão, uma ideia na cabeça”. É lindo imaginar que pode ser tão simples até pararmos pra pensar: com que dinheiro eu vou alugar/comprar essa câmera?

Que o acesso ao audiovisual para pessoas negras e periféricas nunca foi fácil, isso não é bem uma novidade. Nos anos 2000, um grupo de cineastas, majoritariamente da USP, fotógrafos e produtores criou o manifesto “Dogma Feijoada”, que estabelece um conjunto de sete regras para a criação de um cinema negro brasileiro autêntico:

Diretor negro: O filme deve ser dirigido por um realizador negro brasileiro.

Protagonista negro: O personagem principal da obra deve ser negro.

Temática afro-brasileira: A temática do filme deve estar diretamente ligada à cultura negra brasileira.

Cronograma Exequível: O projeto precisa ter um cronograma de produção realista e executável.

Proibição de estereótipos: Personagens negros que caiam em estereótipos estão proibidos de ser representados.

Foco no negro comum: O roteiro deve dar preferência a retratar o “negro comum brasileiro”.

Evitar super-heróis e bandidos: Personagens que se encaixem em arquétipos de super-heróis ou bandidos devem ser evitados.

O “Dogma Feijoada”, segundo uma das fundadoras, Lilian Solá Santiago, “nasce de colocar esse típico prato brasileiro. O ingrediente principal? Feijão-preto. Suas raízes têm sangue negro. O objetivo do movimento é trilhar o mesmo caminho do hoje famoso prato: sair dos guetos, do andar de baixo, para atingir o gosto popular e ser símbolo nacional. Seus preceitos buscam estabelecer um diálogo entre o cinema e a grande massa negra, excluída das telas e do processo de produção audiovisual. Seus idealizadores, mesmo tendo opiniões divergentes quanto a determinados assuntos, têm em comum uma ideia na cabeça: retratar o negro de uma forma justa, seja no cinema ou na TV” (texto do livro “Empoderadas- narrativas incontidas do audiovisual brasileiro”).

O “Dogma” teve seu lançamento no Curta Kinoforum. Foi um tempo de esperança pra quem estava ali. Era o período da retomada do cinema, quem sabe a gente conseguiria pegar parte desse lote para nós? Alguns dos nomes se estabeleceram no mercado, outros foram para caminhos acadêmicos, e outros para setores da publicidade, mas não em cargos de chefia.

O tempo passa, em 2012 o movimento negro finalmente consegue as cotas nas universidades, há uma crescente busca por profissionais negros no mercado, mas ainda assim a quantidade de pessoas negras inseridas no mercado ainda é bem tímida. Enquanto a academia estava ali pensando em futuros pensadores do nosso cinema, formando os artistas de cinema de autor, do outro lado vinha o Instituto Criar formando alunos para mão de obra mais técnica (com o passar dos anos, a pedagogia da própria instituição tomou outro formato).

E é nesse momento que eu entro na disputa de narrativa desse meio, afinal, me formei em Edição no Criar, internamente desejando – mas nunca assumindo – que queria estar na direção, por acreditar que era impossível e não era pra mim.

Passei pelo RTV de várias agências: Repense, Africa, Talent Marcel. Aconteceu que, por causa de iniciativas públicas para pessoas físicas, eu consegui verba pra fazer o Peripatético, meu terceiro curta. E comecei a sentir que havia entrado na brincadeira chamada cinema.

Fui pra Brasília bem na efervescência do assunto “lugar de fala”. Foi um ano bem importante pro cinema negro, foi a estreia de “Café com Canela”, da Glenda Nicácio e do Ary Rosa; de “Nada”, do Gabriel Martins; de “Estamos Todos Aqui”, da Chica Andrade e Rafael Mellin.

Era 2017 e o assunto “quem está contando a história por trás da câmera” veio à tona. Ampliou-se a discussão de como pessoas brancas reproduzem nossas imagens e vivências de maneira estereotipada e leviana, como nossas histórias servem para alavancar carreiras, conquistar prêmios, mas nunca temos a chance de estar ali na frente dos projetos, na parte criativa e ganhando dinheiro.

Enquanto isso, na publicidade dava pra contar na palma de uma mão quantos diretores negros atuavam no mercado. Esse assunto era inexistente, morto. Até que, em 25 maio de 2020, um homem negro é morto pela polícia nos EUA. Em suas últimas palavras, George Floyd disse: “Eu não consigo respirar”. Parece que essas palavras reverberaram para o mundo a sensação de que nossa comunidade não respira há um tempo. Quem é que vai dar o oxigênio? Veio a campanha Black Lives Matter e isso foi sentido e capitalizado pelas marcas, o que gerou a discussão: cadê a mão de obra negra para fazer essas campanhas sobre pessoas negras?

Então começou um corre-corre de todas as produtoras, tanto de publicidade quanto de entretenimento. Todo mundo queria um preto pra chamar de seu. A Aline Odara, no texto “Onde estão os aliados que investem em projetos de mulheres negras?”, para a Folha de S.Paulo, disse o seguinte: “O investimento social privado no Brasil acontece, em grande parte dos casos, por meio de relações de favorecimento pessoal – uma das piores heranças coloniais –, beneficiando pessoas próximas de quem assina o cheque”.

Como nosso mercado é uma grande bolha e as contratações normalmente são por meio do amigo de um amigo, o colega de infância que estudou no Vera ou o amigo de bar, fica bem difícil pessoas negras acessarem e fazerem esse network, já que não frequentamos os mesmos lugares.

Eu, que nesse período já estava fora das agências e atuando como diretora de publicidade na Paranoid, me juntei com a Mari Youssef e fizemos uma lista de pessoas negras do cinema independente que achávamos que poderiam ingressar na publicidade, pelo perfil estético nas imagens e narrativa. A lista era grande, mas pouquíssimas pessoas foram contratadas. O que eu reflito sobre aquele momento é que as produtoras queriam mais uma performance sobre ser cool e descolado, porque seria fácil vender às agências, do que realmente o trabalho artístico em si. Queriam pessoas negras, mas que parecessem que tinham saído de um vídeo da Vice ou de uma campanha de Nike.

Essa onda também repercutiu nos streamings, principalmente nas salas de roteiro: a preocupação sobre quem iria escrever aquelas histórias. Toda sala precisava de um preto para avaliar se aquela história estava sendo politicamente correta. Foi um período de leve esperança, porém cansativo. Queríamos ganhar nosso dinheiro, encontrar nosso espaço e estar na frente, nas cabeças de equipe. Mas nos queriam apenas pra cobrir aquela cota. Alguns dos nossos conseguiram fazer das tripas coração, driblar e ascender. Foi um tempo bem nebuloso e tumultuado. Era pandemia, estávamos adentrando um espaço que não era nosso, estávamos sendo ouvidos até o momento em que falar não ferisse o status quo do outro. Então, algumas pessoas foram sendo deixadas na geladeira: fulano é difícil, não sabe trabalhar (sendo que contratavam pessoas com pouquíssima experiência, e ninguém dava suporte ou tinha paciência pra esse talento amadurecer).

E agora, em pleno 2025, o mercado está meio estranho – com menos trabalhos na TV, streaming e publicidade. O mercado está voltando à cara dos anos 2000, e a gente achava que só a cintura baixa iria voltar.

Com menos investimentos, os executivos de canal e criativos de agências vão pelo “garantido para não errar. Os diretores também vão pelo que não dá B.O. Então, as equipes técnicas dos poucos projetos que estão acontecendo estão novamente ficando mais brancas. “A Redenção de Cam” nunca sai do nosso desejo de construção da cara do Brasil.

O que encontro agora é uma grande desilusão: nos deixaram subir, pegar ar e ver a praia, agora voltam a não nos deixar respirar.

A pergunta é: que tragédia precisa acontecer para voltarmos a ser vistos e ouvidos? Quem mais dos nossos precisa morrer?

Jessica Queiroz, diretora de cena da Miss Sunshine Films

Leia o artigo anterior da seção "O Espaço é Seu", aqui.

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