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'Doze marteladas e o dedo-duro também jaz estatelado'
Ela o tinha presenteado com uma cópia de um Van Gogh retratando uma cama com criado-mudo.
Depois de escolher a melhor parede para pendurar o presente e, após isso, ultrapassar limites insanos de volúpia e entrega, se separaram suados e com as taxas de serotonina nas alturas.
Um beijo na boca. Uma troca de olhares agradecidos e apaixonados. Ele pulou da cama e foi tomar um banho. Ela continuou deitada, ouvindo ainda o eco daquele badalar dos grandes sinos.
Paixão. Quando a respiração voltou ao normal e seus pés tocaram de novo a terra, ela era sorriso, gozo e plenitude.
Um cigarro! Preciso de ao menos uma tragada, pensou. Ele no banho. Ela na fissura. Será que fica chato eu mexer nas coisas dele? Vou esperar. Não, vou procurar. Será? Acho que sim. Acho que não. Vou, que se dane.
Apesar da alcunha, um criado-mudo sobretudo aqueles sem tranca na boca pode ser de uma indiscrição gritante.
Sedas, jontexes, pregos, martelo (martelo?!), trim, minâncora, neosaldina, fitinha-do-senhor-do-bonfim, minutos de sabedoria, caixa de fósforos quase oca (habitada por um único pilão), chaves do carro, isqueiro, caixinha de chicletes vazia e amarela, moura brasil, óculos escuros... caramba, onde estão os cigarros?! Ah, ali... em cima daquele envelope. Envelope?! Vou abrir.
Não, sacanagem, não vou abrir. Vou. Não vou. Vou, que se dane.
Alê, eu sei que deve estar sendo difícil a separação (tb tô sofrendo!!!), mas daqui a duas semanas poderemos ficar juntinhos pelo tempo que quisermos. Eu, você e o nosso baby! Ele tb está com saudades do papai! Te amamos! Bjssssssss... Dé/baby... ;)
Ele no banho. Ela na fossa. Acabara de descobrir o porquê de tantos plantões de final de semana, tantos chamados de clientes de última hora e tanto zelo com os recados no celular.
Aquele criado-mudo tinha aberto a boca e contado tudo. Cigarro mata. De câncer e de ódio. Não fosse o maldito vício e o maldito criado-mudo cagüeta ela ainda estaria na companhia de anjos.
Tarde demais. Os anjos já tinham pulado fora e dado lugar a outro tipo de escolta. Anjos de raiva. De ódio. Vingança. Morte.
- Amor, pega uma toalha, por favor?
- ...
- Naaanda...! Uma toalhaaaa...!
- Ops, desculpa, Alê. Tá aqui: eu estava procurando um cigarro.
- Tem no criado-mudo.
- Eu sei, já achei.
Com a porta do banheiro entreaberta, ainda soltando vapor quente, ele recebe a toalha das mãos de Fernanda. Instintivamente, começa a se enxugar pela cabeça. Mal o tecido felpudo toca seus cabelos e lhe encobre os olhos POW-POW-POW o ferro do martelo mancha a toalha de sangue. Anjos de morte.
Ainda faltava a testemunha. O serviçal, mudo, mas que ouvia e exergava muito bem. O criado que contara toda a verdade e que, com certeza, ouvira os gemidos de prazer da outra e enxergara as cenas de amor protagonizadas pelo morto.
Uma, duas, três, quatro... doze marteladas e o criado-mudo, o dedo-duro, também jazia estatelado.
Fernanda sentou-se na cama. Com as tripas do móvel aos pés e o martelo no colo, começou a pensar no pequeno órfão. E Fernanda chorou.
Renato Bruno Neto,
Diretor de Criação da Ígnea, agência de propaganda de Campinas
Comentários
Jorge Simeira - Muito bom, texto surpreendente....nunca achei que teria esse final. Brunão continue assim. abraço Jorge
Luciana - Putz, tava chupando uva e lendo o texto, e quase me engasguei , tamanha emoçao! Muito bom! adorei!
Milena Olivati Modesto - Que história hein! Achei que o final seria feliz como nas novelas...Mas como Brasileiro gosta de coisas que tem sangue e tripas....Adorei.
P. Yuraszeck - Dramático, tenso e vermelho. Mente diabólica hein? Coitado do criado-mudo. Excelente.
Guilherme Fernandes - Valeu Brunão. De primeira! Esse cagueta tem tudo que o meu lá de casa... Acho melhor tirar a carta.
Patricio Yuraszeck - Tenso, vermelho, dramático. Muito "Crime e Castigo". Excelente.
Dani Martins - muito bom. diferente de todos os outros. deu um sentido porreta pro misero criado, que um dia foi mudo. parabéns pelo texto, renato.
Barbara - Muito bom texto. Dá vontade de ler outrar coisas do Bruno.