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Despedida II

Do Giba pro Sylvio Lima. Leitura obrigatória

18.11.04

Viagem Encantada ao Mundo Ofídico de Sylvio Lima

por Gilberto dos Reis (publicado em 2000, no 25º Anuário)

Vasculhava eu minhas gavetas de memórias à procura de material para escrever estas mal traçadas quando encontrei um samba-enredo composto pelo meu amigo e redator Chico Ferrão nos anos 80 na finada MPM (que Zeus a tenha). Tomei emprestado o nome desse samba para ser também o título desta nossa rápida viagem. Achei que a letra seria perfeita para servir de guia, já que como todo samba-enredo que se preza, conta uma longa história em poucos versos, embora quase sempre meio cifrada.
Começa assim:
Foi no meio da folia,
Na Lapa, em pleno carnaval
Que nasceu o nosso guia
Aiatolá da alegria
Sylvio Lima, o maioral
(Vamos falar)
O Sylvio, que ao saber desta premiacão disse: ”Hall da Fama?! Tô mais para Quarto de Despejo da Fama”, nasceu numa 3ª feira de carnaval. Talvez aí tenha nascido também seu gosto pela boa Música Popular Brasileira e por seus bons compositores e intérpretes. E por aquilo que cria as melhores condições para que eles existam: o povo, a liberdade e o Rio de Janeiro.

Aiatolá da alegria...
Essa expressão, uma obra-prima de concisão, merece um comentário à parte. Repare que se você colocar um turbante e uma túnica no Sylvio, ele vai ficar parecidíssimo com o Aiatolá Khomeini. Sem esses adereços, só o seu mau humor é que fica parecido com o do Khomeini para coisas como modismos, falsos valores, ufanismos, eufemismos, hipocrisias, vaidades, pieguices, crendices e, principalmente, feijoadas com pertences separados. Mas ao detonar sua indignação e iconoclastia o faz com idéias tão originais e criativas que essas ocasiões acabam se transformando em momentos brilhantes de humor, provocando não raras vezes cãimbras abdominais naqueles que o escutam.

Se correr a cobra vai picar
Se ficar a cobra vai morder
Tem veneno para dar
Para dar e pra vender (bis)
Silvíbora e Sylvio Língua são apenas dois dos inúmeros apelidos relativos ao mundo ofídico dados a ele em função do estilo peçonhento das suas críticas. Exemplos: logo depois de ir para a DPZ, estava decepcionado com certas atitudes e posições da agência perante seus clientes, atitudes essas que terminavam por deteriorar o trabalho, não fazendo jus à reputação da agência. Quando lhe perguntaram o que estava achando de trabalhar lá, deu o bote:
“A DPZ é uma agência que pensa que é a DPZ...” *
Sobre a Lintas, pela mesma razão, disse certa vez que a agência era “um cardume de 'tirarucus'”.
Na MPM, criou o Hall of Shame: um mural para serem colocados os piores anúncios “bons” por nós encontrados. O Sylvio fez questão de inaugurá-lo com um anúncio institucional de fim de ano feito pela própria MPM de Porto Alegre para um cliente de insumos agrícolas onde se viam duas pás enterradas na terra e o título que dizia: “Pás na Terra.”

(Foi na editora Abril)

Foi na Editora Abril
Num passado multicor
Que a propaganda viu
Um contato-desenhista
Um artista-redator...
Em 1957, Sylvio Lima fez a Escola de Propaganda do MASP por amor: queria casar e precisava arranjar uma profissão. Foi a opção natural para quem desenhava, fazia caricaturas e criava personangens com extrema facilidade. Antes, havia feito cursinho para arquitetura durante, nas palavras dele, “uma eternidade: 2 dias”. Formou-se em Propaganda com 8 em Composição Gráfica e, acreditem, 5 em Redação.
Começa a ilustrar e criar anúncios para uma farmácia do bairro onde morava, o Bexiga, chamada Drogalândia. Em seguida, faz desenhos (como aqueles das listas telefônicas) para o Anuário Edap. De lá foi para a Anderson Clayton como assistente do departamento de Propaganda. Conhece Julio Ribeiro, Carlos Magaldi e Luiz Celso de Piratininga, executivos das agências que atendiam a Clayton.
Nessa época já tinha uma outra namorada, secretária de um cliente da MPM (ela de novo), que o recomendou lá e onde ele foi contratado para atender a Lambretta do Brasil! Nos primeiros 40 dias choveu, segundo ele, “como na Macondo de Cem Anos de Solidão”. E o cliente ficava na Vila Anastácio (é longe hoje). Ele mal conseguia pegar um táxi para ir lá. Quando conseguia “tomá-los de assalto”, nunca dizia pra onde ia. Limitava-se a um “vai em frente que depois eu ensino...” Depois de passar pela Denison a convite de Julio Ribeiro, finalmente chega à sua última experiência como atendimento: Oscar Colucci o leva para a Abril para ser contato da revista 4 Rodas. Na hora do almoço e à noite criava anúncios para que seus colegas contatos conseguissem vender mais facilmente aos clientes a idéia de anunciar. Em 66, aconteceu tudo o que ele não queria: foi promovido. Para escapar, propos que fosse criado também na 4 Rodas um departamento de propaganda nos mesmos moldes dos que já existiam nas outras revistas do grupo e que fosse dada a ele a gerência da unidade, já que ele não queria a promoção mas queria o salário.
O contato-desenhista vira artista-redator.

E são tantas as histórias
São inúmeras memórias
Leões nas prateleiras
Idéias pioneiras
Ouro e prata a brilhar... (breque)
Lá na Abril, ele cria seu primeiro anúncio exclusivamente como redator. Era para a Secretaria de Segurança Pública e o título, sobre a foto de um belo modelo, dizia: "Este homem tem tudo para ser um fracasso: beleza, inteligência, juventude e um cigarro de maconha nas mãos." O departamento cresceu rápido e os anúncios produzidos lá começaram a ser notados. Em 68, foi conversar com o Neil Ferreira na Standard e saiu contratado. Logo em seguida, Julinho Xavier o leva para a CIN. Em 70, volta para a Denison e, junto com seu diretor de Criação, Ercílio Tranjan, cria o seguinte título para uma promoção de calças da Ducal: “A Ducal abaixa as calças.” Ter esse tipo de idéia em 1970, não era nem um pouco recomendável. Em agosto de 1975, volta para a MPM. E é lá que participa da criação de uma das mais notáveis campanhas da história da propaganda brasileira: o lançamento da Fiat no Brasil.
Relembrando: "Enfim, um carrão pequeno." O filme onde o Fiat faz o percurso dos tanques de guerra no campo de provas do exército: "Fiat. Brasileiro, vacinado e reservista". O filme onde o carro sobe e desce as escadarias da igreja da Penha no Rio "para mostrar que você não precisa pagar seus pecados toda vez que lançam um carro novo." O anúncio sobre segurança: "1905. A Fiat constroe 500 carros por ano. 1975. A Fiat destroe 500 carros por ano.”
O filme "Último Posto", aquele do posto de gasolina no deserto em que o carro passa direto pelo posto e o dono, irritado, anuncia a chegada do carro mais econômico do Brasil. O filme em que uma mulher, largando o marido, vai colocando dentro de um 147 toda a bagagem que estava num baita carro americano, enquanto esbraveja sem parar. No fim, sob o olhar atônito do marido, pergunta: “E você não diz nada?” E ele: "Como coube tudo isso aí dentro?!" O filme "Laço", onde a mangueira de uma bomba de gasolina tenta laçar um Uno. O filme de um plano só em que as pessoas colocam bagagens em um trem, até se ver, depois do trem partir, que na verdade elas estavam colocando a carga numa perua Fiat. O filme “Pernas” para o depilador Walita, eleito para o Hall da Fama do Clio Awards e pelo British Council of Advertising como um dos 100 melhores filmes de humor do século. Nele, um rapaz com pernas lindas fala das qualidades do aparelho, garantindo que, com ele, a consumidora pode ter pernas tão bonitas quanto as dele. Nessa hora, uma linda mulher se levanta atrás dele revelando a verdadeira dona das pernas. O filme em que um garoto com uma metralhadora nas mãos imita com a boca o som da arma e, sem perceber, canta o início do Samba de Uma Nota Só. Fusão para o garoto sentado num piano de brinquedo tocando Samba de Uma Nota Só e o locutor pergunta: “O que você prefere que seu filho tenha nas mãos?” Assina Brinquedos Hering. Todas essas peças e muitas outras criadas posteriormente, em especial na DPZ e ST, e que este espaço não pode comportar, ganharam Leões em Cannes, Profissionais do Ano, Clube de Criação, etc, etc. E mais do que isso, ganharam a saudável inveja de toda uma geração.

E Pelópidas Malheiros
Traz o Sancho na coleira
E debaixo da jaqueira
O chorinho brasileiro
Vai até o sol raiar...
O Sylvio tem muitas outras particularidades.
Por exemplo: seu único carro até hoje é um Fusca 62 comprado zero e mantido todos esses anos zero-bala. Quando vai a um lugar onde haja serviço de manobristas, vai logo advertindo: “Cuidado que é da coleção...”
Pelópidas Malheiros é um dos muitos tipos que o Sylvio não se cansa de criar só pra se divertir com eles. Pelópidas teria sido o autor de “Veja ilustre passageiro o tipo faceiro que tem ao seu lado...(Run Creosotado)” e que até hoje “verte” para o português castiço anúncios atuais. O resultado é extremamente pândego, como diria Pelópidas.
Seu gosto por animais também é notável. Teve dezenas de cães. Assim que um morre, ele traz outro filhote no dia seguinte. O Sancho da letra foi um deles, um simpático basset hound. Talvez um dos que ele mais tenha gostado por causa das suas qualidades: preguiçoso, glutão, folgado e covarde.
O Sylvio também usa o quintal para atraiar centenas e centenas de pássaros só para vê-los em liberdade. Mantém enormes gaiolas sem portas, constatantemente abastecidas com frutas, alpiste e quirera, o que provoca um tráfego de mais de 15 espécies diferentes, que passam por lá diariamente para suculentas refeições. Admirá-los da mesa de bar, vinda diretamente da Lapa Boêmia, bebericando uma boa e rara cachaça é um dos seus prazeres prediletos. Maior que esse, só se houver alguém junto para um bom e longo papo. Adora pequenas (e grandes também) “contravenções”: aproveitando a morte de uma sibipiruna e a bobeira da Prefeitura, fincou na frente da sua casa, em pleno Jardim Europa, uma frondosa jaqueira. Hoje ela vive repleta de jacas que o enchem de orgulho quando são roubadas.
Foi também o mentor, principal incentivador e, por 12 anos, flauta-solo de um conjunto de chorinho chamado Gente Humilde que, para fazer jus ao nome, tinha como objetivo, única e exclusivamente, ensaiar. Às vezes até horas em que inocentes velhinhas da vizinhança começavam a querer confessar crimes que seriam impossíveis de terem cometido só para conseguirem um local mais tranquilo para passar a noite.

Perguntado se gostaria de deixar alguma coisa registrada neste espaço, disse que sim: “Os nomes dos parceiros que me carregaram nas costas até o Hall...”
Aí vão eles: Joaquim Oliveira, Rubem Sampaio, Nelson Catto, Anibal Guastavino, Laerte Agnelli, Adilson Ferrari, Luiz Saidenberg, Feijão (João Carlos de Souza Neto), João Simone, Spencer Chingotte, Márcio Carvalho, Helga Miethke, Odir Greco, Marco Braz, Sergio Adamo, Kátia Oliveira.
Por fim, pergunto: “E aí, Sylvio, até aqui valeu a pena?”
E ele, com sua língua bipartida: “Não.”

Se correr a cobra vai picar
Se ficar a cobra vai morder
Tem veneno para dar
Para dar e pra vender ... (bis)


*Todas as citações deste texto foram lidas e aprovadas pelo Sylvio.

Despedida II

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