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Entrevista: Marcelo Maragni

Bastidores da foto que quebrou o algoritmo e + aventuras

24.10.23

Em uma janela de 5 segundos, uma nuvem estacionada no céu poderia significar o mundo. Ou o fim dele, para dar a carga emocional equivalente ao tamanho do projeto. Bastaria isso para que um trabalho de meses de dedicação fosse desperdiçado. Essa era a pressão que havia sobre o fotógrafo paulista Marcelo Maragni, autor da agora célebre imagem que traz a silhueta do surfista Ítalo Ferreira diante do “anel de fogo gerado pelo eclipse solar, no dia 14.

A cena foi publicada por Ítalo em seu perfil no Instagram e também pela Red Bull, empresa para quem Marcelo trabalha há 17 anos. A foto tem mais de 921 mil curtidas e supera 13 mil comentários. Neste final de semana, o projeto teve um vídeo publicado no YouTube, no canal do surfista, mostrando mais detalhes de como o trabalho foi feito (veja mais abaixo).

A ideia da foto é de Maragni, arquiteto de formação e fotógrafo profissional desde 1999. Em meados do ano passado, ele já estava com o projeto desenhado na cabeça. Precisava apenas apresentá-lo para a Red Bull, para quem já fez fotos de momentos espetaculares no esporte. A marca poderia não topar. Afinal, a tal nuvem poderia aparecer e estragar tudo. Mas a Red Bull aceitou a aventura no primeiro momento. E a história se fez.

Não foi a primeira vez que o fotógrafo levou para a marca um projeto mirabolante. Em novembro de 2019, Maragni propôs uma façanha: levar Sandro Dias para fazer manobras de skate no alto da estrutura da ponte Estaiadinha, na capital paulista. A ousada ação foi realizada pela Red Bull com foco na Virada Esportiva daquele ano. A marca apareceu plenamente no projeto e na mídia.

Outra ideia de Maragni foi o “Surfing lights”, projeto que consistiu no uso de leds e flashes instalados nas pranchas dos surfistas Adriano de Souza, o Mineirinho, e Pedro Scooby. Em março de 2017, eles surfaram numa piscina de ondas artificiais em Abu Dhabi, numa sessão especial noturna. O fotógrafo utilizou técnicas de longa exposição para capturar momentos que ficaram marcados por luzes e cores. Nas manobras registradas pelas fotos pouco se vê a marca presente nas pranchas.

No caso da foto do eclipse solar não haveria marca alguma aparecendo na cena. Se tudo desse certo, o que se poderia ver seria a silhueta de Ítalo no “anel de fogo”, carregando sua prancha. Tudo deu realmente certo, apesar da agonia provocada em Maragni por nuvens que surgiram no céu na véspera do dia do eclipse. Elas tiraram o sono do fotógrafo.

O fenômeno pode ser testemunhado com perfeição na cidade do campeão olímpico de surfe: Baía Formosa (RN). Que o eclipse solar anular (quando a lua nova fica alinhada entre o sol e a Terra, fazendo surgir o "anel de fogo") poderia ser visto desse modo na região, isso já era conhecido. Mas, para concretizar o que tinha elaborado na mente, Maragni teve de fazer muitos estudos e testes, como ele explica na entrevista que deu ao Clubeonline.

O projeto aconteceu também porque teve apoio de mais duas marcas: Canon e Ford – a montadora já patrocina o atleta. Elas e a Red Bull ajudaram a transformar o que era uma ideia em uma fotografia que foi replicada na mídia social e repercutiu mundo afora.

A Red Bull busca muito a mídia espontânea. Mesmo antes de existir rede social, o conceito já era esse. Não investimos um real em mídia para divulgar a foto. E não tem nenhuma marca na foto. Talvez ela tenha ganhado essa proporção gigantesca justamente por isso. Mas as pessoas associaram à Red Bull, que publicou primeiro”, contou o fotógrafo, destacando que Canon e Ford também ganharam os louros.

Na viralização da imagem, um ponto chamou a atenção de Maragni. Atualmente, nas redes sociais, o que o algoritmo está recomendando mais para as pessoas são os vídeos, em especial os curtos – vide Reels e Stories. “O algoritmo não ‘manda’ você botar foto, e sim vídeo. Foi legal quebrar isso”, afirmou.

A repercussão da imagem mostrou para ele que há espaço ainda para a fotografia. E, no caso, para a que não inclui efeitos na edição. Ou para a que é criada por “inteligência natural”, como declarou. Teve quem pensasse, no início, que a foto do "anel de fogo" poderia ser IA. Mas o que houve mesmo foi muito trabalho antes da realização do projeto.

Acredito que o lugar da fotografia está na verdade. Na IA você faz qualquer coisa. Nós fizemos a foto e mostramos como fizemos a foto”, salientou, apontando que nada foi colocado na imagem que não estivesse lá. Naturalmente lá. Para ele, a autenticidade e a transparência do projeto trouxeram mais notoriedade para o trabalho.

Manobras no céu e na terra

Maragni tem em seu currículo algumas fotos ousadas que não nasceram de sua cabeça, mas que ele conseguiu realizar, o que não é pouco, dada a quantidade de adrenalina gerada no ofício da profissão, por assim dizer. É o caso de um projeto patrocinado pela Red Bull com a skatista brasileira Letícia Bufoni, que fez nas alturas um feeble grind (manobra que é feita no corrimão), em agosto de 2022.

Equipada com um paraquedas, ela executou a manobra a partir de um avião de transporte militar, que teve acoplada no interior uma pequena pista de skate. Ao se apoiar numa alavanca, Letícia fez a porta de trás do avião se abrir. Desse modo, no final da manobra no corrimão, a skatista saiu voando para o céu. E continuou a aventura de paraquedas. O projeto, que ganhou o título de “Sky grind”, teve fotos feitas por Maragni.

Naquele mesmo ano, o fotógrafo já tinha participado de outro projeto carregado de adrenalina realizado pela marca. Em julho de 2022, o escalador Felipe Camargo, um dos grandes nomes do Brasil na área, escalou a maior boca de caverna do mundo, que fica no Parque Estadual Turístico do Alto da Ribeira, conhecido como Petar, no sul do estado de São Paulo.

A aventura é contada no documentário “Gigante de pedra”, produção da Red Bull TV que conta em 37 minutos a jornada do atleta até conquistar esse cume. Para fazer fotos, Maragni chegou a ficar pendurado a 180 metros do chão. “Eu me coloco em algumas situações meio malucas”.

Confira a entrevista:

ClubeonlineQue tipo de trabalho você desenvolve para a Red Bull?

Marcelo MaragniFotografo para a Red Bull há 17 anos. Trabalho com outras marcas também, mas meu carro chefe é a Red Bull. Lá, faço todos os tipos de foto, desde cobertura de eventos até ativações com os atletas. Essas são as mais interessantes. É quando consigo fazer coisas mais criativas. Proponho ideias. Como a que a gente fez com o Ítalo. Muitas das coisas que faço com a Red Bull vêm da minha cabeça. Essa ideia [do anel de fogo] veio de mim. E a ativação do Sandro Dias em cima da ponte Estaiadinha, em São Paulo, também [em novembro de 2019]. Ela foi super comentada.

ClubeonlineComo surgiu a ideia do projeto com o Ítalo Ferreira?

MaragniSurgiu já faz alguns anos. Buscar coisas inusitadas faz parte da minha característica como fotógrafo. Quando soube que haveria esse eclipse, pensei: “vamos fazer com a Red Bull”. No ano passado, fiz a proposta para eles que, desde o começo, toparam o projeto. A gente teve várias dúvidas, como “e se o dia nublar?”. Muita grana seria investida para me levar e mais uma equipe de vídeo, que iria fazer o making of. Uma nuvem poderia arruinar tudo, jogando todo esse dinheiro fora. Então, ficamos num vaivém a respeito do vídeo: levaríamos uma produtora maior? Uma menor? Só um cinegrafista? Ficamos num impasse de como iríamos lidar com essa questão de equipe, tudo porque o trabalho poderia ser arruinado por causa de uma nuvem. No meio deste ano, fui para a região de Baía Formosa fazer um trabalho com o Ítalo. Aproveitei para encontrar a locação da foto.

ClubeonlineComo a Ford se juntou ao projeto?

MaragniQuando a gente começou a fazer o projeto, procuramos parceiros. O primeiro foi a Canon, que emprestou o equipamento. Na Red Bull existe um departamento de parcerias, que foi atrás da Ford, já que ela é patrocinadora do Ítalo. Uma vez que ela já patrocina o atleta, seria interessante se pudessem ser coautores do projeto. E foi isso que aconteceu.

Clubeonline – Que possibilidades essa foto abre para você?

MaragniPor enquanto, está rendendo muitos seguidores. Tem muita gente vendo meu trabalho. Ganhei muita moral na Red Bull. Acho que minhas ideias serão mais ouvidas. Minha cabeça é uma usina de ideias. A Ford também me procurou para a gente fazer algo juntos. Mas não há nada muito concreto ainda. Outras empresas querem fazer outros tipos de parceria. Ganhei um holofote muito grande com a foto. Vai ser legal para a minha carreira.

Clubeonline - O que você precisou estudar para poder transformar a ideia que teve na imagem que você conseguiu?

Maragni Isto é uma das coisas que mais me fascina no processo todo: transformar uma ideia em realidade. Precisei estudar tecnologias diferentes. Uma das coisas que fiz foi usar dois celulares para transformar minha câmera num teodolito. O que é isso? É um equipamento de medição de relevo. Você já viu um pessoal na rua com tripé e outro com uma régua? É um trabalho de medição de relevo, mas de curta distância. O que eu fiz? Peguei uma lente e coloquei um celular em cima da câmera, totalmente paralelo ao chão. Como se fosse no lugar do flash. Ali, abri um aplicativo de inclinômetro para me dar o ângulo vertical. Eu sabia que o eclipse aconteceria a sete graus no horizonte. Então, com o equipamento, consegui ver essa inclinação. Para eu ter certeza da direção, do azimute (a inclinação em direção ao norte), onde aconteceria o eclipse, coloquei a bússola perpendicular ao sensor da câmera. Na medida que eu virava a câmera, isso ia me dando o ângulo, ia me dando o azimute. Com isso, eu consegui bater certinho os graus de azimute e os de inclinação. Isso me mostrou que naquele lugar era possível fazer a foto. Usei também outro aplicativo, chamado Photopills. Você aponta a câmera do celular e ele coloca o sol onde ele estará num dia determinado, numa hora determinada. Ele não tem tanta precisão quanto esse esquema do teodolito. Mas me deu uma ótima ideia de como ia funcionar.

Clubeonline – O que mais você precisou fazer para realizar o projeto?

MaragniEstudei a imagem de satélite. Primeiro achei o mapa do eclipse num site francês que era interativo. Clicava na imagem e sabia a magnitude do eclipse no ponto, a inclinação, os graus, o horário preciso. Isso me ajudou a encontrar a locação. Fui primeiro em Baía Formosa, a cidade do Ítalo. Não achei um relevo que me desse os sete graus de inclinação. O que fiz? Peguei a imagem de satélite do Google Earth e, a partir dali, comecei a procurar lugares próximos com relevo. Fiz uma conta e calculei que precisava ter uns cento e poucos metros de desnível. Algo assim. Fiz a regra do triângulo retângulo que aprendemos na escola para encontrar justamente a distância com a altura e o ângulo. Marquei no Google Earth vários lugares em que achei que a foto seria possível. Marquei lugares onde poderia ficar dentro de uma certa distância. Isso é outro ponto importante. Para fazer o sol grande e o Ítalo pequeno, daquele jeito, eu precisava ficar a uma distância de mais ou menos um quilômetro. Estabeleci essa distância porque já tinha feito testes prévios com a lua uma vez. Então, sabia que essa distância funcionaria. Peguei a imagem de satélite dos pontos e puxei uma linha de quase 1 km na angulação certa para verificar se havia um lugar onde eu pudesse ficar. Marquei todos esses pontos e, em julho, fui até lá. Olhei ponto por ponto. Foram umas 20 montanhas a que fui. Em algumas rasguei mato. Achei três lugares viáveis. Um estava a 1,2 km do meu ponto até o ponto do Ítalo. Outro, 1 km. E achei o local onde fiz a foto: tinha 650 metros [de distância]. Eu escolhi esse lugar porque não queria o Ítalo tão pequeno. Foi a proporção certa. Fiquei muito feliz com o tamanho que ele ficou.

Clubeonline – E quanto às lentes?

MaragniFora isso, precisei estudar como não estragar o equipamento fotográfico com o eclipse. Você não pode apontar uma lente tão grande para o sol porque você pode queimar a câmera. Fui atrás de filtros de densidade neutra, que filtram a radiação do sol, o infravermelho, os raios UV. Encontrei um filtro que foi suficiente para barrar a intensidade solar e fazer a foto.

Clubeonline – Quanto tempo você se dedicou para criar essa foto?

MaragniRealmente não sei. O projeto aconteceu aos poucos. Mas gastei bastante tempo nele. Foi um planejamento longo. Teve visita a campo. Tive de estudar o clima. Em julho, quando fiz a prospecção lá, estava chovendo. Fiz testes dois dias antes da foto e na véspera. Nesse dia, entrou uma nuvem. Estava tudo limpo e entrou uma nuvem. Isso me tirou o sono. Roí todas as unhas.

Clubeonline – Você já fez campanhas publicitárias?

MaragniFiz alguma coisa. Não é o meu forte, mas estou aberto a fazer campanhas. Tenho grande prazer com a fotografia e quero fazer imagens legais. Trago ideias de projetos inusitados.

Clubeonline – Como analisa a repercussão da foto?

MaragniFoi incrível. Esperava algum barulho, mas não tanto. Teve muita gente que não tinha nada a ver com fotografia compartilhando, como analista de economia. Gente que não tinha nada a ver com o esporte, comentou e repostou minha foto. Saiu em jornais, portais, contas gigantescas do Instagram. Foi maravilhoso ver como a fotografia ainda tem espaço. Hoje, nas redes sociais, o pessoal está pensando em Reels, formatos curtos de vídeos. Aí, quando você vai ver: a fotografia ainda é legal. As pessoas fazem o que o algoritmo manda. Mas, neste caso, a gente fez o contrário. O algoritmo não manda você botar foto, e sim vídeo. Foi legal quebrar isso e a foto viralizar do jeito que foi.

ClubeonlineDe que modo você classifica a sua fotografia?

MaragniVejo como fotografia criativa. Dependendo do trabalho, sou mais fotojornalista ou mais artista. Misturo as coisas. Se uso mesclagem de fotos – que já fiz –, eu falo. Não minto. Mas 99% das vezes não faço isso. Busco soluções fotográficas para as coisas. Busco imagens realmente impactantes. Meu caminho é o da fotografia criativa.

ClubeonlineExiste hoje uma discussão sobre o que é a fotografia. Tem até IA ganhando prêmio famoso de fotografia. No caso, vocês conseguiram projeção com uma foto que não teve nada de efeito criado posteriormente. Isso mostra como é importante valorizar o trabalho do fotógrafo?

MaragniA respeito da IA, digo que a inteligência natural é muito mais legal. Com ela, você não está mentindo. Isso é muito interessante. Você está sendo franco com a pessoa que vê a foto. Acredito que o lugar da fotografia está na verdade. Na IA você faz qualquer coisa. Nós fizemos a foto e mostramos como fizemos a foto. Usamos tecnologia, mas sem mentir. Sem colocar algo que não estava lá. Autenticidade e transparência trouxeram mais notoriedade para esse trabalho. O fotojornalismo sempre pregou o “falar a verdade". Até uns tempos atrás a Reuters não deixava o fotógrafo usar flash para não alterar a realidade. Era até exagerado. Era um fotojornalismo extremamente puro.

Lena Castellón

Entrevista: Marcelo Maragni

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