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por Rafael Rizuto, Ogilvy, Dubai
Essa presepada que vou contar aconteceu há uns 2 meses.
Como foi definido antes, um dos meus clientes fixos na agência é a Motorola, qualquer coisa que se faz pra esse cliente tem que passar por nossa dupla, desde um simples panfleto até uma campanha de lançamento de um celular. Até aí tudo bem, mas esse job que vocês vão ler no transcorrer da estória foi um dos mais bizarros que eu já trabalhei na vida: criar a campanha de lançamento do celular com MP3 mais barato da categoria para a população de baixa renda na África do Sul.
Como assim? Por que a gente aqui em Dubai vai fazer uma campanha pra uma coisa tão regional? Sem querer ser chato, por que a Ogilvy de lá não está envolvida nisso?
A diretora de contas com aquele ar de "lá vem ele de novo", disse: "Porque somos o escritório regional da conta, Londres está contando com a gente". Foi aí que pensei, grande merda, bem capaz deles acharem que Dubai é na África.
Vou pular a fase das quarenta e poucas reuniões de briefing, o doloroso proceso de criação e o penoso processo de aprovação que envolve uma campanha em que você é um alien envolvido e partir pra produção.
O processo de produção foi um caso a parte. Pelo roteiro que criamos, a campanha tinha que ser produzida na África e com sul-africanos, isso era lógico. Mas não na cabeça do produtor da agência:
- Vamos filmar no Cairo.
- Você só pode tá brincando, Sam.
- Claro que não, é mais barato, vai por mim, eu conheço um pessoal lá que vai deixar o set igual a Cape Town inclusive com casting que você juraria que são sul-africanos.
Claro! E ainda bem que o diretor de criação não aceitou isso. No final das contas, fomos eu o diretor de criação alemão, minha dupla inglesa, a diretora da conta indiana e o produtor libanês pra produzir uma campanha para sul-africanos. O circo estava formado.
Depois de 10 desconfortáveis horas de vôo com o seu diretor de criação do lado, onde você tem que soar cool e inteligente o tempo todo, desembarquei destruído. Era o último na fila do guichê da imigração e tava rezando e torcendo calado para não pegar uma gordona mal humorada que tava criando problema com todo mundo. Veio ela mesmo e, como toda vez, por causa do meu passaporte verdinho, ela veio cheia de perguntas.
- Tá vindo de onde?
- Dubai.
- Veio fazer o quê?
- Vim filmar um comercial.
- Quando foi a última vez que você foi no Brasil?
- Em dezembro do ano passado.
- Cadê as vacinas?
- ??
- Pode entrar não viu meu lindo. Próximo!
- Peraí, por favor (já sem nehuma dignidade e tentando jogar algum charme pra ela), vamos conversar, olhá lá, tá todo mundo me esperando!! Prometo que dá próxima vez eu trago todas as vacinas que você quiser.
Depois de muitos argumentos e do jeitinho brasileiro:
- Tá certo, seu safado, pode ir, mas se da próxima vez você não tiver essas vacinas eu mesma te mato!
- Thank you.
O clima em Cape Town naqueles dias estava meio tenso, tudo por causa de umas rebeliões que estavam acontecendo, uma briga antiga entre refugiados de Zimbábue, Moçambique, Nigéria e a população local. O bicho tava pegando forte por lá.
Por ser uma campanha para a população de baixa renda, decidimos filmar nas Townships que são a mesma coisa, sem tirar nem pôr, das favelas do Brasil. Era esse o público que a gente tinha que atingir. Na manhã seguinte fomos logo pra produtora pra ficar sabendo que duas das três locações que íamos visitar estavam em chamas por conta dessa briga. Foi aí que começou o perrengue.
O diretor era sul-africano, todo descolado e confiante, bem aquele tipo de diretor "cabeça" que gosta de filmar pobreza e o lado "nu e cru" da nossa realidade injusta, querendo mostrar tranquilidade enquanto todo mundo estava meio com o pé atrás.
Decidimos checar a única locação que não tinha sido incendiada e procurar outras. Fomos lá pra onde a onça bebe água, a maior township, a rocinha de Cape Town. Fui com o diretor e, como toda favela, tivemos que perdir autorização ao "governo paralelo" de lá.
O cara era uma figuraça, o típico malandro brasileiro, de óculos escuros, jaqueta de camurça roxa, e uma calça verde musgo, cheio de colares, pulseiras e "seguranças". Me senti um pouco em casa nessa hora. Parecia que o diretor já conhecia ele de outras atividades, porque se mostraram bem amigos, mas isso não vem ao caso agora.
Ele nos garantiu que era tranquilo e que podíamos filmar e transitar por lá numa boa, apesar de todas as evidências serem contrárias, como gritos, pessoas correndo e barulhos esquisitos.
Fomos rodar pelo local na nossa van, com um carro do figuraça lá nos escoltando. O clima estava muito tenso, muitas pessoas nas ruas, gente correndo, famílias deixando o local com alguns pertences, pessoas olhando pra gente com cara de ódio.
Alguma coisa ia acontecer a qualquer momento. Meu termômetro era a cara do diretor, enquanto ele estivesse calmo eu também estava. Foi nessa hora que a coisa começou a ficar preta, um bando de pessoas chegou mais perto do carro e tentou bloquear a passagem, alguns davam murros no carro, outras cospiam, faziam caretas. Nessa hora me lembrei de um amigo dizendo que lá não tem essa de roubar e sequestrar, eles fazem tudo isso e matam. O matar pra eles é um plus, a cereja no bolo.
Nessa hora o carro que estava escoltando a gente encostou do lado e gritou para o motorista em africano, mas eu entendi como se fosse o mais claro português, um William Bonner anunciando uma tragédia. Olhei pra cara do diretor que estava pálido agora e disse pra mim mesmo: F-o-d-e-u.
Fiquei imaginando como minha mãe ia receber a notícia, e juro que cheguei a desejar uma morte rápida, sem dor pelo menos. Mas, graças a Deus, e a destreza do motorista, conseguimos escapar com tudo.
No dia seguinte, conseguimos achar uma locação mais tranquila e o resto das filmagens foram até bem interessantes. Tive que produzir as fotos pra campanha impressa no mesmo dia das filmagens, com um fotógrafo inglês hippie, que só andava com uma bata fedorenta e morava numa van mais fedorenta ainda.
O filme ficou até legal, com a cara que a gente queria. Fiquei sabendo que tá o maior sucesso por lá; a música do filme virou um hit, porque pegamos um cantor que estava para estourar por lá, e negociamos com o produtor dele que é outra figura e foi nada mais nada menos do que o produtor do Nirvana.
No fim deu tudo certo, todo mundo feliz, contente e, principalmente, vivo.
Rafael Rizuto, Ogilvy, Dubai
rizuto@mac.com