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Festival do Clube 2018

O que o rap paulista e o funk carioca têm em comum?

23.10.18

O encontro não foi apenas de gerações. Foi de experiências dentro de um mercado em transformação que é apoiado por um público para o qual muitas marcas não prestavam atenção até recentemente: o da periferia, o das comunidades. De um lado, Emicida, expoente dorapde São Paulo. De outro, a dupla MC Cidinho e Doca, famosa especialmente pelo hit “Rap da Felicidade”, hoje um clássico do funk carioca. Eles dividiram o palco do Festival do Clube com Felipe Vassão (sócio e produtor musical da Loud), Rynaldo Gondim (CCO da Heads) e Serginho Rezende (sócio-fundador da Comando S Áudio).

Antes do painel, batizado de “A rua é nóiz. Cidade de Deus, também”, houve uma apresentação de slam, duelo de poesia que lembra as batalhas de improvisos do rap. Mayara Vaz, uma das slamers, explicou que se trata de poesia marginal. O slam é autoral, militante e de resistência social. “Há mais de dez anos temos slam poetry no Brasil. Ela foi intensificada com apoio da internet”, contou Mayara, que fez uma apresentação focada no feminismo.

Outros dois slammers trouxeram questões da periferia para o palco. Lucas Penteado fez poesia sobre o cotidiano de quem vive à margem. “O sonho de todo maloqueiro é ter dinheiro”, declamou. Com ideias fortes, Lucas não poupou o público da dura realidade das comunidades. “Depender do governo é o mesmo que esperar que a PM proteja os pretos”. Os versos da slammer Tawane Theodoro, por sua vez, não economizaram na linguagem da periferia. “Nóis cansou de ser humilhada. Nóis não quer tomar a cena; quer o filme todo”. O tema do racismo também foi abordado por ela.  “Nóis tá na cobrança. Morena, parda? Não aceitamos menos que preta. A maior revolução é a gente se animando”.

Violência: apologia x exploração pela TV

Os versos dos slammers serviram para aquecer o debate, que discutiu esses e outros assuntos. MC Cidinho abriu o painel lembrando da polêmica do “Rap das Armas”, composto em 1995 e que recebeu uma versão da dupla em que a violência sobre o Morro do Dendê ficava mais explícita. O funk entrou para a trilha do filme “Tropa de Elite”. “A gente vê violência até em desenho animado. Falar de armas não quer dizer que estamos fazendo apologia. O ‘Rap das Armas’ é e sempre será uma denúncia. Ele fala de armas que estão matando nossa sociedade”, afirmou Cidinho.

Ele comentou que um funk é criticado pelas pessoas por supostamente incentivar a violência, mas que a TV tem a liberdade de fazer programas policialescos, explorando a temática de maneira que muitos consideram tóxica. “Se a TV mostrou, então tudo bem”. Rynaldo pontuou que “a voz que recrimina o funk não se levanta para outras coisas que matam”.

Doca disse que o funk é um dos movimentos musicais mais novos da cultura brasileira. Nasceu na favela e ainda hoje sobrevive na comunidade. “Bateram muito no Rio, mas ele renasce em São Paulo”. Apesar do preconceito das classes mais ricas, o estilo continua atraindo a atenção dos moradores e de outros públicos. “O funk dá oportunidades. O que você prefere: ver um moleque cantando funk ou andando com um fuzil? Há 23 anos nós estamos sobrevivendo só com o funk”, revelou.

O funk denuncia problemas da comunidade. Até então, eles mal eram vistos pelo restante da sociedade. Com o tempo, as novelas da TV passaram a dar mais atenção para o cotidiano do povo das periferias. “Elas mostram como funciona a comunidade, mas quando começamos nós parecíamos marginais”, reforçou Doca. O rap paulista também foca as dificuldades que as comunidades periféricas vivem em São Paulo. No caso do funk, Doca acrescentou que esse papel dos artistas é tão verdadeiro que tudo que foi denunciado lá atrás está estourando agora. “Então, prefira quem está cantando funk, mesmo que você não goste do estilo”.

Inspirações e processo criativo

Questionado por Serginho Rezende a respeito da consistência das batalhas de rimas dos rappers, Emicida – famoso por vencer diversos desses “embates” – desmistificou um pouco do processo. Ele chegou a usar um dicionário, mas achou a tarefa chata. Então, sua estratégia era ler muito e beber de diversas fontes. E assim foi treinando seus improvisos. Não tinha um processo linear. Um dia, perguntou aos rappers que mais admirava nas batalhas se era tudo improviso. Acabou descobrindo que muitas coisas tinham sido escritas antes. “Você é louco? Quem faz isso de improviso?”, perguntaram a Emicida, que respondeu a eles: “eu tô fazendo agora”.

Emicida costumava pesquisar coisas que aprendeu nos raps, mesmo nos tempos em que não havia fácil acesso à internet. Ele ia até uma biblioteca municipal, que tinha computador conectado, e fazia suas buscas. “Quando ouvia algumas coisas dos Racionais e não sabia de quem eles estavam falando, eu me sentia burro. Pesquisei várias paradas. Aprendi sobre Neruda e Gabriel Garcia Marquez. No ‘Rap das Armas’, não conhecia as armas. Fui pesquisar. A gente é uma esponja”, disse. Uma curiosidade: seus álbuns têm nomes gigantescos. Gosta de ser complexo nos títulos que é para dividir informações e instigar a busca por mais informações.

“Música era coisa de rico”

Doca relembrou a dureza dos primeiros tempos do funk. Eles mesmos vendiam suas fitas cassetes para poder comprar mais e divulgar sua música. “A gente veio da época que música era de rico”. Não havia a disponibilidade de estúdios, como acontece com os artistas de hoje. Para poder espalhar suas músicas, a dupla tinha de se apresentar nos bailes – e tanto que eram chamados de chatos. “Somos exemplos de se não lutar, não tem vitória. O caminho mais fácil da favela é o tráfico”. Ao que Cidinho completou: “Se deu certo pra nós, dá para qualquer um”.

A trajetória de Emicida também teve seus percalços. Com 15 anos era estagiário em um estúdio. Lá conheceu Felipe Vassão, que abriu sua mente para a música. “Dependendo do lugar onde você está, você muda de século”, contou. No início dos anos 2000, Emicida ainda estava no toca-fitas quando em alguns lugares já se começava a usar serviços de streaming. “Antes, eu achava que música boa ia aparecer. Não tinha noção da cadeia produtiva da música. Os Racionais eram um norte grande e eles tinham uma postura avessa ao mainstream. E a gente tinha de cortar atravessadores. Porque no meio do caminho da produção precisava ganhar algum dinheiro”, relatou o rapper.

Com o uso das plataformas, a carreira de Emicida foi subindo, mesmo sem que ele tivesse muito acesso à tecnologia. Ele passava a semana correndo no SoulSeek, mas, sem computador em casa, ficava no limbo. Um dia, em 2006, lhe disseram que um vídeo seu tinha mais de um milhão de views no YouTube. Emicida não tinha ideia. “Voltei para casa pensando ‘se cada um me desse um real... com um milhão de views...’  Fiquei pensando muito porque o ônibus para casa levava duas horas para chegar”. E assim ele capitalizou essa quantidade de visualizações. “Um milhão é algo especial para qualquer coisa”. Fizeram um cartaz e levaram para um show anunciando “o cara de um milhão de views no YouTube”. O show lotou.

Em 2008, Emicida e sua equipe começaram a produzir um CD que vendiam a R$ 2 cada. Iam para tudo quanto era rolê. Emicida não tinha cara de mau, como observou. Não tinha voz grossa. “O rap que eu fazia era completamente desrespeitável. Chamavam de alternativo”, brincou. A solução? Buscar os lugares onde se apresentavam os rappers mais conhecidos e pedir “só um flowzinho”. Era uma versão do “chato do baile” que Cidinho e Doca tinham sido no passado.

Bem na nossa vez

A história de Emicida poderia ter sido outra se a própria tecnologia não os desafiasse. O negócio dos CDs parecia estar indo bem. Na internet, recebia pedidos. Chegaram a mandar 80 CDs para o Japão. De fato, o rapper chegou a vender dez mil cópias “feitas em casa”. Mas os impactos da música digital já estavam afetando seriamente a indústria fonográfica. “A gente cresceu vendo histórias como a dupla Leandro e Leonardo vendeu vinte milhões de cópias. Aí, na nossa vez, não tinha mais CD. A gente até criou uma frase que usa sempre que algo começa a dar errado de repente: ‘bem na nossa vez’.”

Na sequência, MC Cidinho comentou que a música transforma, mas o que transforma mais é a perseverança. Felipe acrescentou que muitas pessoas podem pensar que fazer música é como se fosse uma atividade só, mas que na verdade as canções são narrativas de uma vida. E afirmou que o primeiro breakthrough deles foi a forma de fazer música, mais do que a música em si. “Vocês são todos frutos dos seus meios”, emendou.

Há muito tempo que a coisa não é só a música”, respondeu Emicida. A carreira não se limita mais a vender um disco. Há desdobramentos de atividades, de negócios, como a Lab Fantasma, que faz parcerias com marcas de roupa. Antes a internet era mais para divulgar os trabalhos. Hoje é lugar de e-commerce para os rappers. “Existe uma atmosfera que a gente cria, que gera espelho”, explicou Emicida. “Cidinho e Doca falaram que o funk gera emprego. Isso é transformador. São 25 anos em que eles são protagonistas de uma história. Quando criamos a Lab Fantasma pensamos no todo. Não é o mercado que diz o que vamos vender”, acrescentou.

No século XXI, para existir e subsistir, isso não se trata exclusivamente de música. Tem de pensar no todo. No político, no social. Você expande seus projetos para além do som. Jay Z e Beyoncé estão fazendo isso. Eles têm programas de financiamento de estudos para jovens. O dinheiro na mão de gente assim é revolucionário porque eles têm condições de fazer circular mais dinheiro entre as pessoas. A revolução deles não é individual. É coletiva”, afirmou o rapper.  Ao que reforçou: “se a gente discorda da maneira como o sistema opera, então o caminho é a revolução coletiva”.

Lena Castellón

Fotos – Airton Adas

Festival do Clube 2018

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