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O Espaço é Seu

O poder do ‘entre’ (Bia Bonani)

23.11.21

O poder do ‘entre’.
Por que ser mãe, morando fora, me fez uma planner melhor

Sete anos atrás eu empacotei minha vida inteira e me mudei para Londres. Fiz isso por mil razões. A vaga que me ofereceram era ótima, Londres é o meu lugar favorito no mundo, e de qualquer forma, eu estava um pouco cansada de viver um constante vai e vem entre amor e ódio por São Paulo. Ironicamente, aqui eu amo e odeio os meses frios com a mesma intensidade. O mesmo com a seriedade com a qual os ingleses encaram tudo na vida – linda e irritante na mesma medida. Eu apenas troquei a experiência de amar e odiar de endereço. Talvez viver entre amar e odiar seja meu lance. Ou talvez viver ‘entre’ seja meu lance.

Há um pouco mais de um ano e meio meu filho nasceu – metade brasileiro, metade inglês. Desde o primeiro dia de vida, ele herdou o estado de ‘entre’ que eu escolhi como realidade uma vez que decidi me mudar para cá: meus amigos brasileiros acham que ele é loirinho. Meus amigos ingleses amam a pele morena que ele tem. Minha família no Brasil fica chocada como ele é educado (já pede por favor!), minha família inglesa acha ele super carinhoso (ele beija até os personagens dos livros que ele mais gosta). A maternidade já é bem confusa quando só tem uma cultura envolvida. Quando você inclui outra nessa panela, o que é normal ou não, aceitável ou não, fica ainda mais aleatório – o que pode ser enlouquecedor ou totalmente libertador.

Me lembro do dia que isso se tornou mais claro do que nunca pra mim – numa ligação de FaceTime minha mãe viu meu filho subir e descer as escadas sozinho. Choque total – 'você está louca?', disse ela. ‘Ele vai rolar escada abaixo! E se ele decide fazer isso quando você não estiver por perto?’. Aí eu tive que explicar: ‘Mãe, aqui isso é super normal. Juro que a escada não é um drama. Ele vai descendo de bumbum, e outra, eu nunca não estou por perto’. Algo bem parecido acontece com temperaturas. Nos mesmos 20 graus no quarto eu tenho que acalmar os brasileiros dizendo que meu filho não vai congelar dormindo, e ao mesmo tempo prometer para o meu marido que ele não vai derreter no meio da noite. Ou poças. Poças abrem uma caixa de pandora de opiniões. Os ingleses amam uma poça – as crianças se jogam, brincam, maior diversão. Para gente no Brasil? Poça é poça. Suja, sei lá o que tem lá dentro, gente. O ponto é – o que é normal aqui não é aí. O que é aceitável aí, não é aqui - é só uma questão de perspectiva. E se tem algo mais importante do que isso pra um planner aprender, juro que eu ainda não ouvi.

Outro dia eu estava assistindo uma série bem adolescente no Netflix ('Ginny and Georgia', tipo uma novelinha que aborda alguns temas interessantes, um deles a experiência de uma vida multicultural) quando me surpreendi ao me deparar com uma passagem que falou profundamente comigo: 'I belong in the spaces between. I can switch and twitch and make the decision of which'*. Meu filho também. Isso as vezes é bem solitário. Mas mais do que tudo, é sempre enriquecedor.

O poder de ser um observador em todos os lugares, de não estar nem lá nem cá, até mesmo de ser um peixe fora d’agua - aqui e ali. Te dá ao mesmo tempo a distância e a intimidade necessárias para pensar lateralmente, para chegar em insights realmente originais. A perspectiva do ‘entre’ te mostra que sua verdade nunca é absoluta. Te dá a complexidade que é essencial para gerar ideias muito simples. Afinal, ser um planner é exatamente sobre estar num estado permanente de ‘entre’: entre lógica e criatividade, entre o atendimento e os criativos, entre ser conciso e inspirador, entre o briefing do cliente e o trabalho que vai para rua. Ser uma brasileira vivendo em Londres e mãe de uma criança meio brasileira e meio inglesa me faz uma planner muito melhor, entre mil outras coisas.

*"Eu pertenço ao ‘entre’. Eu posso mudar e voltar, e decidir em que lado estar", em tradução livre.

Bia Bonani, diretora de estratégia da Grey de Londres

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