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Instinto e Confiança (Lu Villaça)
A língua portuguesa não tem uma expressão que traduza o sentido e a intenção de visceralidade presente em “Trust your guts”, frase que ouvi algumas vezes nos momentos mais inspiradores no Festival Ciclope, em Berlim, na semana passada.
A ideia de confiar nas nossas entranhas, nos pensamentos instintivos que nascem do mesmo lugar que os alertas de sobrevivência e a paixão.
Ainda que nem sempre sendo nomeada, sinto que a essência dessa expressão tem permeado todas as conversas e reflexões dos inquietos na busca pelo excepcional.
Toda minha reflexão sobre instinto, liberdade e criatividade aqui assume por óbvio que estamos considerando processos profissionais, com respeito, suas lógicas cumpridas.
Só que sem o medo, que é antídoto da fertilidade criativa.
Pego emprestada a assertiva síntese de Bianca Guimarães que, durante seu talk no festival, escreveu bem grande no centro da tela: “Fearless X Reckless”.
O primeiro painel que assisti por lá foi o case study do filme “Awaken Your Madness”, da Nike (assista abaixo). O nome da campanha soa alegórico a toda a discussão que começava com uma citação de Dan Weiden na qual ele diz que o caos nos engaja de forma que a ordem não consegue fazer.
Sam Pilling, o diretor do filme, Becca Pottinger, DC da Weiden+Kennedy Londres, e Jordi Pont, VP Brand Creative da Nike, contaram muito da loucura do processo: “a real roller coaster”. Comentaram as infinitas mudanças de percurso e obstáculos de produção, destacando o quão recorrente de fato isso é na publicidade e que, portanto, não podemos permitir que esse caos soe às partes envolvidas como uma implosão, e sim que seja o maior convocador da união e colaboração.
Eles comentaram: “As pessoas acham que o craft aparece quando há tempo, quando o processo é perfeito. Mas o craft aparece quando está todo mundo entregue, quando 'you trust your guts and you trust everybody else’s guts'”.
Então, antes que nossos argumentos de defesa nos traiam: não nos enganemos que longe de nós as coisas são possíveis porque estão sendo feitas de forma tão diferente. Estamos todos submetidos ao mesmo insano modelo de negócio.
O que nos impede de viver processos com mais entrega e ousadia não é a falta de ordem, o cronograma, o orçamento, nossas possibilidades ou qualquer outro contexto. É a ausência de confiança nos pares escolhidos para os projetos. Uma confiança que traz intrinsicamente a liberdade necessária para que algo excepcional tenha espaço para nascer.
Sam encerrou sua apresentação com a palavra “TRUST” escrita com letras garrafais tomando toda a tela do auditório.
A palavra “Confiança” seguiu naturalmente ecoando durante os três dias de festival, permeando painéis dos mais distintos temas, como um denominador comum estrutural. O oxigênio que, em falta, asfixia a criação.
Eu penso que essa confiança essencial é prejudicada exatamente por um mercado que está se deixando ser guiado pela insegurança financeira, métricas de performance e não por criatividade. Uma área da comunicação que parece ter perdido o valor da história, da emoção e do envolvimento.
Três dias depois, de volta ao Brasil, ouvi João Caetano, que mediava um painel no Festival do Clube de Criação, questionar se os demais ali naquele palco também enxergavam uma perda da confiança dos clientes nas agências.
Não só voltava ao tema que corria nas minhas veias e me inquietava com os dias vividos no Ciclope, mas eu, como parte dessa cadeia, também sinto essa perda que fragiliza, portanto, o fundamental elo entre mim (toda a produção) e o cliente.
A pergunta gerou uma discussão sobre performance que ameaçava me desanimar quando Sergio Eleutério, diretor de marketing do McDonald’s Brasil, resgatou meu entusiasmo: ele concretamente concordou que performance vende, mas completou: “Mas a criatividade vende mais.”
E a criatividade é bonita (e mais e mais rica) quando somada entre as partes exatamente por ser manifestação pura da coisa única e preciosa que é cada indivíduo, com seu olhar e bagagem humana (emocional, cultural, adquirida...).
O talk de C Prinz no Ciclope, na minha opinião, é o epítome onde toda a chama dessa conversa queima: ela costurou a sua autoaceitação ao estabelecimento de sua linguagem enquanto artista, de forma muito visceral foi dando imagem àquela construção absolutamente indissociável do ser humano que nos falava, incorporando como parte de sua entrega nos trabalhos as condições que a atravessam e a subjetividade construída por uma jornada que não se replica.
Não à toa, foi o único talk aplaudido de pé: humanidade comove.
Apesar dos loucos movimentos dessa nossa indústria, a comunicação que alcança de verdade o receptor ainda é a que sai de um coração batendo forte.
Quem ainda precisa ser convencido disso?
Estar entre os que confiam é estar perto das mais bonitas possibilidades. E voltar ao “básico”, o material vivo de cada um, não deveria nos parecer tão difícil assim.
Lu Villaça, diretora de cena da Surreal e membro da diretoria da ABDC
Leia texto anterior da seção "O Espaço é Seu", aqui.