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O espaço é seu

Carnaval Líquido (por Marilia Barrichello)

26.02.14


As cores, os excessos, os sons. As interações do Carnaval são tão intensas que é fácil se inebriar e ficar apenas na superfície. E, dessa forma, sobram corpos expostos, visões polarizantes, falsos moralismos e faltam dimensões mais humanas sobre essa festa secular.



A força do coletivo é tanta, que a visão da massa, de um todo homogêneo, acaba se sobrepondo e criando uma imagem estereotipada. A tônica do Carnaval, no entanto, é cheia de contrastes: a muita música se mescla com a pouca roupa, com o muito suor, com o pouco sono, com a muita alegria, com a pouca censura.



Se voltarmos no tempo, vamos descobrir que o Carnaval tem um viés religioso e libertário, antecedendo os 40 dias da Quaresma. Época festiva e mais permissiva, dentro do tolerável, para preparar o corpo e o espírito para a privação, em seguida. Tanto que uma das possibilidades interpretativas para a etimologia da palavra é carne vale (adeus carne) ou de carne levamen (supressão da carne).



Voltando para o século XXI e a sociedade pós-moderna, que se delineia frente ao esmaecimento das organizações reguladoras, como o Estado, a igreja e a família, mais livre e sinestésica per se, qual o real valor do Carnaval? Na sociedade que já convive com os excessos, dos mais variados possíveis, o que, efetivamente, sobra para o Carnaval?



Se no passado, a festa tinha uma função de escape, de autoafirmação, de novas experiências e permissividades, hoje ele próprio é que se transforma, a partir das pessoas que fazem a festa. E surgem contrapontos instigantes e interessantes:



Vestir e despir. Num mundo altamente sexualizado, os corpos expostos, que antes tinham um teor libertário, já não chocam mais. Até porque, se olharmos mais profundamente, os mais despidos nem sempre são os mais desnudos. Porque a falta de roupa no corpo exposto não necessariamente implica numa alma e espírito livres e autênticos.



Fantasia e Identidade. A fantasia parece estar em busca de expressar uma nova parte descoberta de si próprio. Não mais a idealização longínqua, mas uma aproximação com os próprios sonhos e a libertação de amarras muito mais internas do que externas. A fantasia, então, vira um meio para projeção de si próprio e não um fim.



O coletivo individual. Se sentir parte do grupo, mas não se perder nele; encontrar a si mesmo. A busca por expressar um lado novo de si mesmo e nesse movimento encontrar novos outros.



Esquecer e lembrar. Curtir o Carnaval longe da felicidade ilusória e perto da coragem, a festa se descortina para a gente passar com nossas verdades, expectativas, sonhos e fantasias, reais e imaginárias. Não o Carnaval escapista para esquecer, mas aquele para ser lembrado, nem que por um instante, e também registrado e compartilhado.



Sem fronteiras entre o dentro e o fora. O clima do Carnaval inspira algo de dentro que contagia algo de fora. No Carnaval, mais é mais, e, se descobrir mais, em um momento global de contingências e frustrações, é uma alegria sem fim.



O Carnaval pós-moderno que se modula de forma líquida, então, passa por um momento de resgate de seu próprio lugar frente a uma sociedade em transição. Não mais a ostentação, o gigantismo exacerbado, mas abordagens coletivas de família, amizade, proximidade. Não mais um modelo imposto, que se aceita, mas um encontro que se procura.



Nesse ano a Santa Clara, agência na qual trabalho, vai fazer um Carnaval diferente. Um Carnaval que nasceu de cada um, escolhido por todos. E ele começou a ser pensado no final do ano passado, quando todos foram convidados a escrever uma marchinha que confrontasse nossa própria identidade: Quem disse que sou Santa? Dado o fato de que a agência fica na Vila Madalena (bairro boêmio de São Paulo), isso também tem uma particularidade interessante. Grupos foram formados, muita diversão para escrever letra, melodia e o voto popular escolheu a trilha que vai embalar nosso samba.



Nesse movimento, descobrimos facetas de nós mesmos e dos outros, desconhecidas ou até mesmo impensadas. Surgiram letristas, passistas, músicos, seres cantarolantes. E novos grupos de afinidade, novas amizades, admirações.



O bloquinho vai sair de verdade. O Carnaval dentro do Carnaval. Sem vergonha, sem regra, sem distinção, sem catraca. Aberto a todos aqueles que quiserem, despretensiosamente, deixar-se levar (de fora para dentro) e se descobrir (de dentro para fora). Tudo misturado: santos endemoniados e demônios santificados. Todos exorcizados. Porque no Carnaval vale ainda mais a máxima: nem tudo que parece é.



Por Marilia Barrichello, diretora de planejamento da Santa Clara e mestra em ciências da comunicação com ênfase em sociologia 



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