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A síndrome do ineditismo não adquirido
Uma (nem tão) nova síndrome
Não tenho nada a dizer que já não tenham dito. Escrevo por mero exercício de competência.
As aspas estão aí obviamente porque as palavras não são minhas. Li isso um dia e nunca mais esqueci. Infelizmente, não consigo me lembrar de quem disse essa frase nem a forma exata como foi construída, mas o conceito é esse. Quis colocá-la aqui porque a uso muito como exercício diário de sobrevivência há algum tempo e porque ela será, como minha avó gosta de dizer, a moral da história.
Fora da propaganda, cultivo a escrita como atividade paralela, apesar de às vezes ainda não me sentir competente o suficiente para tirar coisas do fundo da cabeça e transferi-las para o papel com precisão. Peno durante o dia como todo profissional de criação pena, tentando ter ideias inéditas. E ralo durante a noite tentando materializar sentimentos, pensamentos, percepções em forma de texto corrido, música, palavras soltas, também, de um jeito novo e só meu. Constantemente me pego enfurecido durante o dia e querendo pular da janela à noite. Vou explicar por quê.
Na semana passada, vi colegas de trabalho torcerem o nariz para o produto que uma marca de sucos colocou à disposição dos brasileiros. Vi gente reclamar do discurso adotado pela marca, um discurso que defendia a inovação, o ineditismo. Vi neguinho esculhambar a ideia, que, concordo, não é nova mesmo. Já temos coisa do tipo acontecendo lá fora e aqui no Brasil. Outro dia mesmo estávamos tentando colocar de pé uma ideia de produto para um dos nossos clientes e, pesquisando sobre tecnologias vestíveis (ou wearable devices, para ficar mais bonito), descobrimos uma penca de empresas que já passaram por essa pulseira há muito tempo.
Nessa mesma semana, eu e meu dupla, bem mais experiente que eu, discutíamos sobre dois exemplares de uma famosa revista de propaganda que estava na minha mesa. Comentei com ele que fazia um tempinho que eu não folheava essa revista. Ele pegou uma das revistas e começou a olhá-la do meu lado. Eu estou há muito mais tempo que você sem olhar essa revista e, cada vez que faço isso, percebo que a propaganda que tem aqui dentro tem sempre a mesma formuleta, pouco se recicla e muito se repete, disse ele, enquanto colocava a revista de volta na mesa. Apesar de ter dito isso sob a influência de seu mau humor matutino, não acho que ele esteja errado. E o muito se repete ficou ecoando na minha cachola.
Estou usando esses exemplos porque eles me fizeram enxergar um problema que está uma camada acima na hierarquia de problemas mundialmente graves para profissionais de propaganda. Um problema que pode se tornar crônico, quiçá, fatal para a carreira de um criativo. Trata-se de uma síndrome que venho tentando não deixar tomar conta de mim, mas que já faz parte da vida de alguns, principalmente da galera mais nova. É a síndrome do ineditismo não adquirido. Funciona basicamente assim: o cara tem uma ideia que ele julga genial. Ele fica feliz pra cacete, se remexe na cadeira, faz piada, dá cambalhota, sai para tomar um café e curtir a vida de criativo danadão, dando um rolé na vila. Mas, quando ele volta para a agência, a síndrome do ineditismo não adquirido aparece. Antes de evoluir a ideia e descobrir até onde ela pode ir, o cara começa a pesquisar: abre aba atrás de aba, descobre um maldito site de propagandas do mundo (cujo nome nem gosto de dizer) e começa a procurar incansavelmente por algo parecido, até descobrir que um estudante de propaganda do Camboja teve a mesma ideia e postou a pranchinha ou o video case nesse site, ao qual, infelizmente, qualquer estudante desinfeliz tem acesso. Esse tipo de plataforma assombra os portadores da síndrome e é um dos grandes agentes potencializadores do poder viral da síndrome do ineditismo não adquirido.
Do céu para as profundezas do inferno em poucas sinapses. O cara sofre, xinga, bate na mesa, esbraveja, critica o mundo, o sistema, o mercado, a Dilma, o chefe, o manobrista. Em vez de tentar fazer a ideia crescer, ganhar corpo e, quem sabe, parar de pé e ter a cara do cliente, ele desiste dela ou a coloca de lado sem nem dar mais importância para ela. Desiste porque a ideia não é inédita. Francamente, o que essa empresa de sucos fez vai ganhar algo muito mais valioso do que um prêmio por ter sido inovadora. Vai ganhar a simpatia do consumidor, o status de revolucionária dentro da indústria brasileira de sucos de caixinha. Sim, porque o consumidor brasileiro de suco de caixinha não passa o dia pesquisando em site de referência tentando descobrir se o que a marca fez já existe ou não. Ele olha o caderno de promoções do supermercado e vê a propaganda que ele quer ver onde ele quiser ver. O resto, você tem de fazê-lo perceber. E isso dá para fazer inovando sem realmente ser inovador, pode ser falando o que já foi falado, desde que ele, o consumidor, ouça pela primeira vez. Pode ser reinventando ideias não tão novas e, também, se esforçando para ter as novas. O lance é ter cuidado ao ficar procurando o ineditismo. Podemos até dar a gigantesca sorte de encontrá-lo algumas vezes, mas, durante a procura, não devemos desistir de estradas já percorridas, porque elas podem trocar de asfalto, ganhar uma recapeada e levar o cliente a lugares onde ele gostaria de estar.
Já faz um tempo que não fico tentando escrever quando chego em casa à noite. Não tento mais. Eu sento e escrevo. Escrevo para me sentir competente, para aprimorar minha visão sobre mim mesmo, para me ver evoluindo dia após dia, para descobrir novas artimanhas com as palavras e mostrar para a minha cabeça que eu tenho controle sobre ela. Não estou fazendo nada de inédito cada vez que sento e crio algo para mim, não estou falando nada que alguém já não tenha dito ou pensado um dia. Mas estou me satisfazendo. E isso é um bom remédio para combater a síndrome do ineditismo não adquirido. Só de me fazer bem já está valendo. Enquanto caminhamos em busca do novo, garimpando e garimpando todos os dias, precisamos ficar atentos ao que está passando do lado, ao que está ficando na peneira. Talvez, durante esse percurso, exista muita coisa boa que o nosso cliente possa ir usando enquanto não encontramos o nosso prêmio, a nossa ideia inédita.
Seja em site de referência, em revista de propaganda, revirando a própria mente, seja em casa construindo um texto ou uma estante, procurar a originalidade é importante, mas resolver um problema sempre vai ser mais útil. Arrisco dizer que a minha avó terminaria esse papo dizendo algo do tipo a moral da história, meu filho, é que você não vai conseguir inventar a lâmpada de novo, mas existem infinitos jeitos de se iluminar que sequer dependem de luz.
Por Gil Kelmer, redator Agência Escala SP