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O Espaço é Seu

Fábio Ludwig, pai do Antônio, um bebê especial

30.11.11

Meu nome é Fábio Ludwig, sou redator da Artplan, em Brasília, e há nove meses tive um filho com uma síndrome rara.
 
Como terapia, segui o exemplo de centenas de pais de bebês especiais e comecei a escrever um blog sobre o impacto, os desafios, as tristezas e as alegrias de ter uma criança diferente do padrão natural. O endereço é www.flizam.com.
 
Frequentemente vejo campanhas muito emocionantes de instituições como a APAE, por exemplo. A intenção é boa, mas a mensagem vem quase sempre manchada pelo pedido de doações em dinheiro e, apesar de certamente mover as pessoas, talvez gere mais sentimentos de pena e compaixão do que uma efetiva aceitação e quebra de preconceitos.
 
A exposição pura e simples do cotidiano de uma família normal, convivendo com as frustrações e realizações de criar um bebê especial, mas que, é preciso lembrar, terá desafios muito parecidos com os de qualquer outra criança, me parece mais honesto. E certamente traz mais alento às famílias que enfrentam situações similares.


A seguir, dois textos extraídos do meu blog:
 
Barulhos para ler

Querido filho, meu querido Antonio, o papai tem gastado horas, talvez já sejam dias, escrevendo para todo mundo, contando a vida para gente que a gente nem conhece, e, atrapalhado com esses e outros afazeres, tenho esquecido de escrever para você.


Hoje, descobrimos que você não escuta de tudo. Que uma palavra como “sapato” pode soar como “apato” e que talvez, ainda não é certo, teremos que moldar um aparelho de audição para ajudar os seus ouvidos a fazerem o seu dever.


O papai disse aos quatro ventos que não se importaria com isso. Tentei me convencer de que uma deficiência auditiva seria o menor dos problemas, ainda mais uma perda moderada, como parece ser o seu caso. Mas a verdade é que fiquei triste, pois como pai, desejo dar-te asas. E sinto como se tivessem tirado algumas penas dessas asas que estou fabricando para você.


Por isso, meu filho, como não tenho certeza do que você anda ouvindo, resolvi descrever alguns sons que me fazem muito feliz. São ruídos que estão à nossa volta e que espero um dia você possa escutar por conta própria. Até lá, fica este pequeno registro. Um texto para ouvir. Barulhos para ler.


Você gargalha à noite. É imprevisível, como ver uma estrela cadente. E assim como nas raras vezes em que avisto um rastro de luz no céu, faço um pedido: ouvi-lo gargalhar novamente. Este fenômeno só acontece quando você está no colo, em sono profundo e com cabeça atirada sobre algum dos meus doloridos ombros. Sem aviso prévio, você solta um riso moleque, que mais parece um soluço, e sinto seu peito chacoalhar colado ao meu. Tudo se acaba numa fração de segundo, mas deixa aquela pergunta no ar: em que será que você está pensando? Imaginando mil histórias, ajeito o cobertor e aguento o seu peso por mais alguns minutos. Sonho bom não se deve interromper.


Você fala com suas chupetas. Na verdade, briga com as pobres coitadas. Às vezes, quando colocamos uma destas pequenas maravilhas na sua boca, você imediatamente a agarra com as duas mãos e, num ataque paradoxal, tenta arrancá-la dali enquanto a morde com todas as forças. Outra opção bastante comum é tentar engolir a vítima da vez por inteiro, se possível com alguns dos seus próprios dedos de sobremesa. Enquanto a luta se desenrola, sem chance alguma de vitória para a chupeta, você cantarola algo como nhóing, nhóing, nhóing, pausa, nhóing, nhóing, nhóing, pausa, nhóing, nhóing, nhóing, e assim por diante, até que se canse de maltratar a sua presa, como gato que deixa o rato de lado, todo arranhado e babado, em busca de algo novo para se divertir.


Você ronca. Sei que é um barulho pouco ortodoxo para se gostar, mas poucas coisas me dão tanta tranquilidade quanto estar distraído com TV, esperando você dormir, e de repente perceber que você não só está meio derretido na sua cadeira de balanço, mas também ressona como um urso em plena hibernação. É hipnótico. Paro de assistir o que estou vendo para assistir você.


Fora esses pequenos sons, meu filho, que parecem ordinários aos ouvidos, mas são preciosos para a alma, há pouca coisa que consideraria fundamental para viver. Desejo que você consiga e goste de escutar música. Desejo que perceba alarmes, buzinas e outros alertas que possam protegê-lo de algum perigo. E espero que algum dia você compreenda e repita os milhares de pa-pai que digo diariamente para você.


E quando chegar o seu aparelho auditivo, que vai abrir seus ouvidos sem filtros para sinfonias e agressões, desejo que continue surdo como uma pedra para eventuais comentários preconceituosos. A vida é dura, filhote, a gente ouve cada coisa. Não sei se estou preparado para te ver sofrer.


Mas cada coisa na sua hora. Agora o nosso foco são os sons dos animais e as cantigas de roda. Perdoe quando eu errar a letra. Perdoe quando eu desafinar. E tenha certeza, meu filho, que mesmo que você não escute nada, eu sempre cantarei para você.


Estátuas não choram

Cineminha de domingo. Você está tranquilo, plenamente entretido com seu balde de pipoca, acompanhado por um litro de manteiga e mais outro de Coca-Cola, quando alguma cena do filme, sem mais nem menos, traz à tona a lembrança do seu avô falecido, ou do seu cachorro de infância, ou de qualquer outro ser vivo, ou morto, que faça suas glândulas lacrimais tremelicarem. Até aí tudo bem. O problema é quando o filme acaba e o maldito do lanterninha não espera nem os créditos começarem a subir para acender as luzes da sala. Não adianta tapar o rosto. Não adianta fingir que está procurando o celular embaixo da poltrona. Todo mundo sabe, todo mundo viu: você chorou.


Sua mulher, que deveria ser processada pelo Greenpeace de tanto papel que usou para enxugar os olhos, rapidamente saca os óculos escuros da bolsa e age como se nada tivesse acontecido. E você fica ali, provando sua incompetência em manter a reputação, incriminado por uma dupla de olhos ridiculamente inchados e vermelhos, sem contar o nariz escorrendo. A humilhação fica ainda pior quando você por coincidência encontra aquele indivíduo do trabalho, que você não lembra o nome, e que começou a roncar aos dez primeiros minutos do filme, e que por isso – só por isso – não sucumbiu à cena do enterro do cachorro. Você fica na dúvida se é melhor cumprimentar o sujeito ou se enfiar na lata de lixo. Mas não pensa muito a respeito, para não acabar junto com os sacos de pipoca.


Desconsiderando esses pequenos vexames do cotidiano, uma boa dose de choro sempre ajuda a levantar o Ibope, que o digam os bebês e os autores de novela das oito. Certamente você já ouviu falar daquelas imagens de santa que, entediadas com seu trabalho de estátua, de uma hora para outra decidem que são gente e começam a lacrimejar. Houve até um caso de uma que, com mais tino para negócios e percebendo a forte concorrência das colegas, teve a grande ideia de chorar sangue, embora eu e meus botões suspeitemos que tenha sido ketchup. A estratégia deu certo. Logo a santa estava em tudo o que é noticiário e multidões de curiosos invadiam a igreja, espremidos para ver e tocar a santa milagreira, prometendo mundos e fundos em troca de todo tipo de graça possível, na maioria das vezes impossível, num boom turístico de deixar o Mickey Mouse e a sua Disneylândia se roendo de inveja.


Acredito em Deus, rezo todas as noites e faço promessas regulares para Santo Antônio. Não tenho intenção alguma de zombar da fé ou das viagens de ninguém. Meu ponto é que algumas lágrimas aqui e acolá sempre causam uma enorme comoção. E se utilizadas no momento certo, podem lograr mais milagres do que muito santo por aí.


O namorado não quer casar? Diga que tudo bem, com ar de compreensão, e deixe uma discreta lágrima escorrer pelo canto do olho. Se o cara estiver em dúvida, garanto que marca a data.


Se for o contrário, se for ela que não quer morar junto sem antes gastar zigalhões numa festa de casamento, argumente que vocês podem utilizar esse dinheiro para dar a entrada no apartamento, para mergulhar na Polinésia, ou – aqui é preciso embargar a voz e encher os olhos d’água – para decorar o quarto do seu primeiro filho. Pode não funcionar. Talvez você tenha que torrar o seu suado dinheiro em bem-casados. Mas não custa tentar.


Eu confesso que gastei de bom grado os meus trocados, tanto na festa do casório, quanto para esperar o Antonio. E foi um investimento bem feito, porque se tornaram excelentes lembranças, que volta e meia surgem na memória e sempre fazem um cisco cair em cada um dos olhos. O interessante é que as cenas que mais retornam não são as ocasiões clássicas, como o dia em que ouvi pela primeira vez os batimentos cardíacos do meu filho. Para mim, foram mais marcantes os momentos de simples expectativa, como a tarde em que tirei centenas de fotos da Ana e do seu barrigão.


Certa noite, assim que deitamos na cama, a Ana dá um pulo e anuncia: a bolsa estourou. Achei que ia cuspir meu coração pela boca, mas fingi estar tranquilo diante da situação. Minha mulher também dissimulava seu nervosismo com bastante competência. E nesse me engana que eu gosto, fomos vivenciando aquela sequência de eventos que ocorre de forma parecida para todo mundo, começando pela corrida ao hospital, terminando no berro do neném.


Só que a vida não segue a lógica das comédias românticas e, para a minha surpresa, não houve berro do neném. Quando o Antonio saiu da barriga da Ana, ele não chorou. Ninguém nos deu os parabéns, ninguém mostrou o bebê para a gente, não tiramos aquela foto pós-parto em que todos saem horrorosos e lindos ao mesmo tempo, aos prantos de tanta emoção. Confuso por aquele silêncio inesperado, corri atrás do médico que levou meu filho dali. O choro do Antonio demorou pra vir. E quando finalmente veio, saiu fraco, soou diferente. Senti um fraquejo no corpo. A notícia ainda não tinha sido dada, mas eu já podia senti-la. Não estava tudo bem.


Nos minutos seguintes, fui avisado da suspeita de síndrome genética. Conversei com a Ana, liguei para a família, tomei algumas providências e depois de tudo mais ou menos ajeitado, fui para casa tomar um banho. Sozinho, escondido, chorei. Chorei como não fazia há muito tempo. Chorei de tristeza.


Em pouco tempo o desespero se transformou em raiva, depois em aceitação, depois em ação. Por instinto de sobrevivência, ou talvez por postura de vida, deixei o sofrimento cortar e sangrar, mas com a clara intenção de sair calejado lá na frente e retomar a vida.


Outro dia o escritor Paulo Coelho publicou que “a dor assusta quando mostra sua verdadeira face, mas seduz quando vem disfarçada como sacrifício ou renúncia.” Não poderia sintetizar melhor o desafio que tenho à minha frente nesse momento. A dor de ter um filho especial vem anestesiada pelo amor incondicional que se nutre a qualquer filho. E essa dor pode, mesmo nos pais mais esclarecidos, gerar uma falsa sensação de mártir, uma equivocada impressão de que somos seres humanos melhores porque renunciamos a muito, quando não a tudo, para cuidar das nossas crianças.


Pai e mãe são tudo igual. Meus desejos depois de ter o Antonio são os mesmos que os dos meus amigos que tiveram filhos. Quero dormir até tarde nos finais de semana, mesmo sabendo que isso é quase impossível. Quero acertar na loteria, pra não me preocupar com o preço das escolas. Quero ir ao cinema. Quero ter mais filhos e espero que eles berrem ao nascer.

Encontrei um canto aqui dentro para hospedar a minha dor, mas a tenho mantido fraca, com pouca água e pouca comida. Espero que um dia ela canse dessa vida de miséria e vá tentar a sorte em outro lugar. Ainda mais agora, que o Antonio tem reconhecido a minha voz e me olha com um esboço de sorriso quando falo com ele. Se você deixar, a vida mostra que rir é bem melhor do que chorar.


Fábio Ludwig
Publicitário, pai do Antonio, marido da Ana e autor do blog
www.flizam.com

 Comentários


Marina - Que emocão senti lendo seus textos, Fabio, principalmente o sobre a audição do seu filho. Mudou meu dia.

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