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O Espaço é Seu

A vida seamless está nos deixando adormecidos? (Kika Brandão)

13.05.25

Muito se fala sobre como nós estamos inseridos na era do imediatismo. Desde a evolução da internet, que permitiu o acesso à informação ser mais democrático, a chegada dos smartphones e a ascensão das redes sociais, nós nos acostumamos facilmente com o fato de que tudo está sempre na palma da nossa mão. Ainda assim, os nascidos antes dos anos 2000 têm um comparativo de mundo que já viveu na era analógica e que consegue ponderar entre a vida on e off line, e às vezes até sente vontade de fazer um detox tecnológico. Já a Gen Z, nascida nesse contexto totalmente online e digital, vive uma necessidade de estar conectada a todo o momento.

Por outro lado, quando observamos o seu comportamento, a Geração Z cada vez mais se afasta dos conflitos e contato social: da trend do celibato (leia-se apagão sexual da Gen Z), passando pela falta de familiaridade com telefonemas - e, no ambiente de trabalho, o pavor de câmeras abertas.

Para o mercado de consumo, fica a pergunta: como esse comportamento reflete nas experiências de compra entre marcas e clientes, uma vez que já se vislumbra um futuro de consumo com menos intermediações, e mais “less". Cashless, frictionless, e já se fala até mesmo em guerras com menos fricção, chamado de “tragedy-free”, e, em uma sociedade que prescinde da confiança entre as partes, o trust-free?

Há uma percepção de que vivemos em uma sociedade que, a partir das facilidades da vida moderna, prioriza experiências sem fricções: mais fluidez e menos atritos. De um lado, temos as jornadas de compra mais fluídas, com meios de pagamento que não exigem contato e automações que colaboram para que as recomendações de ofertas e a compra em si sejam hiper personalizadas.

Na experiência de consumo, uma jornada “seamless - termo que se refere a algo que é contínuo, sem interrupções ou emendas visíveis - feita de forma estratégica, levando em consideração todas as possibilidades de jornada do cliente, é sinal de diferenciação e fidelização, pois entrega a promessa de compras rápidas e sem atritos.

O desejo por uma vida sem fricções, em termos de mercado, se iniciou principalmente no olhar atento às jornadas dos consumidores e aos meios de pagamento. O momento de conversão dessa compra, na etapa do “fundo de funil”, tornou-se sem fricções através do desenvolvimento de meios de pagamento que tornam este momento cada vez mais facilitado. Os meios de pagamento têm acelerado a decisão de compra e impulsionado as vendas de grandes, médios e pequenos negócios. Desde os meios mais sofisticados, até os mais acessíveis, hoje as empresas conseguem oferecer mais possibilidades para tornar garantida a conversão em aquisição. Quem nunca deixou de realizar uma compra porque o estabelecimento não aceitava pix, por exemplo? Mas os meios de pagamento foram além: hoje nós temos a modalidade de pagamento in-app, diretamente dentro de apps, sem necessidade de redirecionamento para um site externo, garantindo maior conveniência para o usuário, pois muitas vezes os dados já estão armazenados dentro do próprio aplicativo. Permite um processo de compra rápido, incentivando compras impulsivas.

Os pagamentos autenticados por biometria, como impressão digital, reconhecimento facial ou de íris dos olhos, que eliminam a necessidade de cartões físicos e senhas, tornam o processo de compra extremamente rápido - bastando um toque ou um olhar, e mais seguro, pois cada biometria é única para cada usuário. Os smartwatches, pulseiras ou outros dispositivos inteligentes conectados, os wearable (“vestível”, em português), atribuem mais conveniência de compra por não ser necessário carteiras e celulares. Ótimos para quem quer tomar uma água de coco durante a caminhada matinal, mas não costuma praticar exercícios físicos com algum dispositivo no bolso. O QR Code, resquício da pandemia da Covid-19 para sanar um problema sanitário, foi amplamente utilizado por diminuir a necessidade do contato físico e hoje permite que pequenos negócios otimizem o processo de venda e o tempo do comprador. Além dos pagamentos automáticos por assinatura, e dos pagamentos com dispositivos que só precisam de aproximação, através da troca de dados entre dispositivos próximos, atribuem ao momento de compra uma rapidez impressionante.

Já nas relações interpessoais, o seamless pode significar o afastamento das conexões e das emoções. Se por um lado temos as jornadas de consumo fluídas e experiências sem contato, do outro, sabemos que os apps de relacionamento funcionam como um facilitador para encontros e para conhecer pessoas. Isso porque trocar imagens e palavras nos apps de relacionamento economiza o tempo dos indivíduos que querem engatar algum tipo de relacionamento - mesmo que mais fugaz. À necessidade de tempo, da aleatoriedade da vida e das tentativas, os apps entregam "matches" entre pessoas com interesses em comum, mesmo que somente estéticos.

Mesmo com a facilidade de encontros que apps de relacionamento oferecem, a Geração Z já se comporta de forma a evitar novas relações, num movimento de quase celibato: as relações são muito tóxicas, o desgaste é grande demais. O imperativo comum é o pensamento de que é melhor evitar do que enfrentar um cansaço mental. 

Foi a partir disso que o movimento “Boy Sober” (que significa algo como “sóbrias de garotos”) surgiu. Cansadas de aplicativos, dates ruins, encontros sem sentido, as mulheres resolveram dar um tempo dos homens. O propósito do movimento é fazer uma abstinência de homens, ou seja, passar um período sem se relacionar com eles. Sem beijo, sem sexo, sem paqueras. O termo teria sido criado por Hope Woodard, influenciadora norte-americana de 27 anos, que estipulou ficar um ano longe de relacionamentos amorosos ou sexuais. Pelo Tiktok, ela criou um diário para compartilhar sua experiência. Por mais que muitos depoimentos relatem a adesão ao movimento “Boy Sober" como algo benéfico, especialistas chamam a atenção para o isolamento e o medo de se relacionar no futuro.

Nas relações, criar intimidade, necessariamente gera atritos, fricções. Na construção de um relacionamento, ambos os envolvidos vão se expor, negociar, conflitar, ter desencontros de objetivos e desejos - tudo que foge da lógica seamless - ainda mais quando falamos de sexo, que por si só é atrito, intimidade, e que nem sempre gera as melhores experiências.

No momento em que a sociedade vive essa fase, criar intimidade, transar e tudo que envolve essas relações parece estar gerando um enfado nos mais jovens: se relacionar dá trabalho, criam-se empecilhos, e, a partir dessa ideia, é melhor não se relacionar para evitar a fadiga. Uma geração que fricciona menos e gera mais tensões.

É preciso encontrar equilíbrio, entre a vida seamless e as relações entre pessoas, pois de qualquer forma, a frustração será inevitável.

Kika Brandão, coCEO do Estúdio Eixo

Leia texto anterior da seção "O Espaço é Seu", aqui.

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