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O Espaço é Seu

Não à infantilização dos criativos (Marcelo Reis)

14.07.25

O jogo é sempre o mesmo: a maioria dos grandes grupos compete entre si pelo dinheiro da mídia, no Brasil, com overhead alto e redução de custo operacional, e obriga a equipe sobrecarregada a performar nos festivais internacionais, investindo quase nada em inovação, criatividade, produção e tempo das pessoas. O ano começa e a frase é a mesma: “ganhe muitos prêmios, mas você tem dinheiro para meia dúzia de inscrições e zero para produção. Se vire.”

Parte do trabalho que vemos concorrendo é fruto da rotina de profissionais frustrados com o dia a dia funcional de algumas agências, o que os faz apostar todas as chances de ascensão da carreira nos prêmios e afins. Como a verba é quase nula ou permuta, eles acabam “se virando” para turbinar trabalhos medianos, para que se pareçam com os cases da vida das empresas. Não que esse comportamento seja justificável e mandatório, é evidente que todo profissional que trabalhe numa economia de livre mercado tem o poder de exercer seu livre arbítrio. Mas como virar as costas para uma fórmula mais que consagrada de progressão de carreira? A tentação e a opressão dos gestores e do sistema é pesada. E pessoas boas erram sob pressão.

O Festival de Cannes é uma indústria poderosa, dispendiosa, onde pouco mais de 3% das peças inscritas ganham algum Leão. Este ano, foram por volta de 26.900 peças e a mais barata custava 675 euros. Sim, esse investimento catapulta agências e carreiras. Respeito o Festival, participei dessa caça ao tesouro por décadas, admiro e defendo que a celebração da criatividade efetiva é boa para todos e atrai talentos.

Uma parte importante do debate, no entanto, não me parece estar recebendo o devido destaque. Os dois líderes criativos demitidos como resultado da constatação de fraudes e inconsistências de campanhas premiadas também eram coCEOs das empresas. Ou seja, acumulavam o cargo de co-líderes das suas agências, reportando-se aos grupos. E não existe trabalho que vá a festivais que não seja discutido entre pares CEOs e, depois, entre CEOs de grupo. E, posteriormente, em comitês internacionais de criatividade com líderes mundiais. O Festival de Cannes é um negócio tenso para as agências, não brincadeira da criação.

Nada do que eu escrevo já não é sabido por 10 entre 10 publicitários. E não é prática de uma ou outra agência, é prática de rede internacional. O básico 1 da gestão ensina que, do nível do problema para cima, a responsabilidade é de todos, não de um ser humano só, que, até a noite anterior, era considerado brilhante pela liderança.

Na entrevista de 27 de junho ao Valor Econômico, Troy Ruhanen, o respeitado líder mundial do Omnicom, esqueceu a dupla função exercida por Ícaro Dória: “O Omnicom fornece políticas e treinamento sobre IA e sempre levou muito a sério, mas isso não é uma questão de política ou orientação de IA. Trata-se, em vez disso, de um erro de julgamento significativo do ex-CCO da DM9. Jamais toleraríamos esse tipo de comportamento e acreditamos que a equipe executiva da DM9 está tomando as medidas adequadas para lidar com isso e evitar que aconteça novamente. Quero acreditar que essa fala expresse uma versão simplificada que chegou até o sr. Troy sobre os eventos, através da tal "equipe executiva" local.

Por que apenas os CoCEOs/CCOs são demitidos, se nenhum trabalho apresentado a clientes, inclusive os pro bono, chega à reunião sem a anuência do time de gestão, finanças e legal das agências? Departamentos de operação, atendimento, mídia, planejamento, comunicação institucional, jurídico, VPs, CEOs, boards centrais, em geral, acompanham tudo, pois as agências costumam permutar a produção e pagar pela inscrição. E, aprovado pelos clientes, caso premiado, o trabalho é festejado por CEOs Brasil/Latam/Mundo/Via Láctea.

Acho lastimável o que está acontecendo no mercado brasileiro de publicidade em pleno 2025. A parte fria e burocrática do business bebe champagne quando dá certo, mas empurra a criação para o jardim de infância quando dá errado. Não somos meninos, somos executivos da criatividade e nos dedicamos à essência da profissão: criar soluções originais e sólidas de negócio para marcas. Eu poderia citar aqui vários nomes de profissionais compromissados assim.

Não é o Festival de Cannes, os criativos e a busca da excelência criativa que estão em xeque. São os modelos das multinacionais e sua relação pouco transparente com as marcas e predatória com os colaboradores, com poucas exceções. Das 19 agências premiadas, somente duas são nacionais e ganharam menos de 10% dos prêmios.

Lamentável. Mas até o ano que vem, provavelmente, já teremos esquecido - menos a DM9DDB, que devolveu uma dúzia de troféus e demitiu “o único gestor responsável, que sabia de tudo sozinho”. Seria correto se a liderança da Publicis também devolvesse o Leão como forma de mostrar seus valores. Nesse momento de caça às bruxas criativas e de queimar “a única feiticeira responsável que, também, sabia de tudo sozinha”, seria mais digno primeiro devolver a vassoura premiada que fez a bruxa voar. Mas isso é outra história…

PS longo: queria deixar uma mensagem ao ético, relevante e indispensável Clube de Criação e à nossa diretoria. Esse é o melhor momento para se inspirar na organização de Cannes e realizar um Festival sem premiar peças criadas/produzidas de janeiro a março, que não resultaram de briefings do cliente e que não representam o melhor do real mercado brasileiro. Que tal, usando por exemplo o segmento financeiro, premiar o que o Itáu, Bradesco, Santander, XP, C6, Nubank, Stone, Cielo etc fizeram de melhor em 2024, trazendo relevância criativa estratégica e influência no negócio ao nosso próprio Festival?

De que adianta a gente se congratular com peças feitas para vernissage? Já julguei em festivais passados peças em inglês, legendadas em português por falta de videocase em versão nacional. Por que deixamos de louvar nossas campanhas conectadas com a cultura pop brasileira ou de aprimorar o critério do "trabalho na rua” dos nossos clientes? Que tal começarmos por nós o exemplo de resgate do que é bom e faz a diferença? Todo mundo vai sair ganhando. Que tal começarmos agora?

Marcelo Reis, criativo fundador da Alegria-R

Leia texto anterior da seção "O Espaço é Seu", aqui.

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