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Verissimo, o dissimulado (Gustavo Mayrink)
Luis Fernando Verissimo costumava se definir como um gigolô das palavras. “Vivo à custa delas. E tenho com elas a exemplar conduta de um cáften profissional. Abuso delas. Exijo submissão. Maltrato-as, sem dúvida. E jamais me deixo dominar por elas. Não me meto na sua vida particular. Não me interessa seu passado, suas origens, sua família, nem o que os outros já fizeram com elas. As palavras, afinal, vivem na boca do povo. São faladíssimas. Algumas são de baixíssimo calão. Não merecem o mínimo respeito”.
Certa vez o dissimulado gigolô resolveu explorar as palavras à sua vontade escancarando o que há de mais sério em uma história, o limite entre a realidade e a linguagem.
Um exemplo dessa desordem está em “Palavreado”, em que se fala de Pantufo, Rei da Cizânia, cuja capital é Nova Velha (a Velha Velha fora destruída por um paroxismo).
“Um dia chega a Cântaro um jovem trovador, Lipídio de Albornoz. Ele cruza a Ponte de Safena e entra na cidade montado no seu cavalo Escarcéu. Avista uma mulher vestindo uma bandalheira preta que lhe lança um olhar cheio de betume e cabriolé. Segue-a pelos becos até um sumário — uma espécie de jardim enclausurado — onde ela deixa cair a bandalheira. É Lascívia.
Ela sobe por um escrutínio, pequena entrada estreita, e desaparece por uma porciúncula. Lipídio a segue. Vê-se num longo conluio que leva a uma prótese entreaberta. Ele entra. Lascívia está sentada num trunfo em frente ao seu pinochet, penteando-se. Lipídio, que sempre carrega consigo um fanfarrão (instrumento primitivo de sete cordas), começa a cantar uma balada. Lascívia bate palmas e chama:
— Cisterna! Vanglória!
São suas escravas que vêm prepará-la para os ritos do amor. Lipídio desfaz-se de suas roupas — o satrapa, o lúmpen, os dois fátuos — até ficar só de reles. Dirige-se para a cama cantando uma antiga minarete. Lascívia diz:
— Cala-te, sândalo. Quero sentir o seu vespúcio junto ao meu passepartout.
Atrás de uma cortina, Muxoxo, o algoz, prepara seu longo cadastro para cortar a cabeça do trovador.
A história só não acaba mal porque o cavalo de Lipídio, Escarcéu, espia pela janela na hora em que Muxoxo vai decapitar seu dono, no momento entregue ao sassafrás, e dá o alarme. Lipídio pula da cama, veste seu reles rapidamente e sai pela janela, onde Escarcéu o espera.
Lascívia manda levantarem a ponte de safena, mas tarde demais. Lipídio e Escarcéu já cavalgam por motins e valiums, longe da vingança de Lascívia.”
Seu primeiro romance, “O Jardim do Diabo”, foi feito em dois meses por encomenda da MPM como brinde do Natal de 1988 e depois vendido em livrarias. O trabalho na agência deu-lhe também a glória máxima para um redator: sem escrever uma única linha, foi considerado o melhor de 1975, formando dupla com um diretor de arte na produção de um calendário. Sua vida e carreira mudaram tão depressa que, quem diria, já recebia prêmios por ter criado talvez um impecável novembro ou um deslumbrante outubro.
Nos últimos anos, antes do AVC que teve em 20121, dizia-se satisfeito num mundo que não te satisfazia.
“O destino é um grande gozador”, escreveu ele, várias vezes, em suas crônicas.
Gustavo Mayrink, diretor de criação e conteúdo e só ousa escrever por ter lido muitíssimo Verissimo
O escritor Luis Fernando Verissimo faleceu neste sábado (30), aos 88 anos, em Porto Alegre (RS), leia aqui.
Leia texto anterior da seção "O Espaço é Seu" aqui.
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