O espaço é seu

“Everybody wants an intelligent son.
 My intelligence only got me into difficulties” - Su Tung P’O

Foi logo no início da minha vida de publicitário em São Paulo que a declaração de um diretor de arte de um dos escritórios da Leo Burnett (EUA) me chamou a atenção porque batia com um sentimento que também era meu. Ao ser questionado sobre o que mais o incomodava no fato de ser negro, ele devolveu a seguinte resposta: “O tempo que sou obrigado a perder me preocupando com isso”. Se fosse um aviso do que estava por vir, não poderia ter sido mais claro, pois aqui estou eu, um redator publicitário, neste doce novembro, mês da consciência negra, escrevendo exatamente sobre o negro na propaganda brasileira. Ou, em outras palavras, escrevendo sobre algo que praticamente não existe. Nenhuma outra atividade ou ocupação que eu tenha tido me obrigou a gastar tanto do meu tempo pensando nos mecanismos desse fenômeno, que faz com que as agências de propaganda brasileiras sejam tão brancas.

É claro que não foi como publicitário que descobri que 350 anos de regime escravocrata fizeram um estrago danado e deixaram marcas que se incorporaram ao nosso cotidiano. O que me surpreende é que a publicidade tenha me ensinado mais sobre a natureza dissimulada dessa herança ibérica do que os livros de Gilberto Freyre, que tive que ler (com prazer) nos meus tempos de estudante de sociologia, em Recife. Talvez eu deva até ser grato por tantas lições de vida que a minha profissão me proporcionou.

Por outro lado, seria muito egoísmo não aproveitar esta oportunidade  de compartilhar com você, publicitário ou não, negro ou não, algumas dessas lições. Quem sabe assim eu não me vingo e obrigo você também a ocupar mais do seu tempo com um assunto que deveria existir tanto quanto existem negros em nossas agências.

A primeira lição: a dissimulação, principal arma do racista de fabricação nacional, também pode servir para a defesa da sua vítima. Quando o assunto for discriminação racial, entre mudo e saia calado. Na verdade, você nem estava presente. Outra dica: adote frases do tipo “talento não tem cor” ou “a falta de negros na propaganda é apenas um reflexo do racismo da sociedade”, para justificar o fato absurdo de um país que produziu escritores como Machado de Assis, Lima Barreto, Cruz e Sousa e Paulo Lins não ter redatores publicitários negros, por exemplo. Deve ser porque ser escritor é bem mais difícil do que ser redator. Nem deixe passar pela sua cabeça o impulso de revelar que você conhece muito publicitário branco que não é  tão talentoso assim, e que o pré-requisito parece ser adotado com mais rigor na hora de contratar o negro. Este sim, tem que ser muito bom para furar o bloqueio. Também não vá ser ingênuo a ponto de tentar argumentar que se por um lado a publicidade não é responsável pela existência do racismo, por outro ela é uma poderosa arma para a manutenção ou remoção do mesmo. Isso realmente pega mal. Coisa desse pessoal que não tem o que fazer e fica criando ONGs. Se possível, torne-se invisível como tão bem sabe fazer o bom e covarde racista tupiniquim. Se você for daquele tipo de negro que pode se passar por branco, não vacile: seja branco de corpo e alma. Isso aumenta exponencialmente as suas chances de se dar bem. Se alguém adotar uma postura radical e disser que racismo simplesmente não existe, concorde. Não o trate como cego, se ele se enquadra nesta categoria; nem cínico, se for este o caso. Muito menos revele que não existe outra classificação possível ou que é bastante improvável que um padrão de comportamento social se repita com tanta precisão e freqüência sem uma ideologia, doutrina ou coisa que o valha, que o sustente.

E quando o álibi – todo racista brasileiro tem um álibi, pode reparar - for o repertório? Olha lá como você vai expressar a sua convicção sincera de que pôr um negro aqui outro ali nas peças produzidas pela agência é pouco, muito pouco, na verdade, migalhas. Pelo amor de Deus, e da sua carreira, não vá sugerir que contratar profissionais negros deveria ser regra tanto quanto contratar brancos. E se alguém contra-argumentar dizendo que há falta desses profissionais no mercado, engula a sua certeza de que não precisa ser tão criativo assim para encontrar maneiras de se investir na formação de tais profissionais. Sugerir que a publicidade é suficientemente rica para proporcionar este retorno à sociedade, nem pensar.

Para os raríssimos negros do mercado, um conselho básico: digira as piadinhas e as insinuações racistas. Não vá cair na besteira de responder que você, além de fazer na entrada e na saída, também faz na cabeça. Silenciar é tudo. Não vá dar uma de Silvino. Outro risco que você também corre se falar o que pensa é o de ser taxado de chato ou racista ao contrário, como se fosse comum ver negros barrando a ascensão profissional de brancos; negros impedindo a entrada de brancos em rodas de samba; ou branco reclamando porque sofreu preconceito racial por parte de um funcionário negro do Iguatemi. Se você insistir no assunto, aí é promovido à categoria de negro recalcado, pode escrever.

Racista brasileiro se borra de medo só em pensar que pode ser desmascarado, portanto, se algum deles se descuidar e deixar cair a máscara diante de você, lembre-se da primeira lição: dissimule, finja que não viu nada. Jamais se ache suficientemente inteligente para desafiá-lo. Principalmente se a sua descoberta for feita a portas fechadas. Ninguém vai acreditar. Vão dizer que só pode ser um terrível engano, que aquela pessoa tão bacana não pode ser racista, que você tem mania de perseguição, que está procurando desculpa para a sua demissão, e por aí vai.  Caso você viole esta regra estará perdido: vão exigir provas, te ameaçar de processo, te isolar. Prepare-se para perder algumas pessoas que você considerava amigas, pois elas vão desaparecer pelo mesmo buraco por onde os ratos abandonam o navio. Este processo purgatório, aliás, é o lado bom da coisa.

Finalmente, uma lição tão simples e tão óbvia que se o inteligente aqui tivesse o mínimo de massa cefálica, teria simplesmente consultado um dicionário, e não aprendido dentro de uma agência de propaganda: preconceito, meu amigo, é prejuízo.

Silvino Ferreira Jr.

Redator

silvino.silvas@gmail.com

 Comentários

Murilo Casagrande - Muito bom o texto Silvino! O mercado é realmente muito elitista, gostaria de mandar um texto para saber o que você acha... mmodolo@superpedido.com.br

Felipe Cavalcante - clap, clap, clap, clap (de pé)feel.cavalcante@terra.com.br

Danilo Fontelles, designer - Silvino, a desigualdade existe sim, mas barra o negro bem antes dessa etapa no mercado de trabalho. Na minha turma de Programação Visual, na UFPE, tinha um ou dois negros. Trabalhei em uma agência de Recife que era equiparada em número de negros e brancos, contudo a criação era quase toda branca e tenho absoluta convicção de que não era por uma questão de preconceito. A solução está bem na base. Vamos fazendo nossa parte imediata e cobrando para que se executem as medidas mais profundas. Mas aí o papo é longo. Força, irmão! danilofontelles@gmail.com

Guto Pellegrini - Silvino, a parte que eu mais gostei do texto é: "o tempo que somos obrigados a perder". Não que eu concorde, mas porque faz pensar. E após pensar, eu digo 'nós não somos obrigados a perder tempo com a questão racial". Cada um pode apenas se dedicar a ganhar a vida para si mesmo, o que é típico de publicitário. Mas se queremos `ganhar tempo´ com a questão racial, precisaremos, de alguma forma, reunir forças, ir além do quadrilátero dos Jardins, nos juntar. É o que eu acho. Abraço forte, guto@wg.com.br

Surya Pombo - Parabéns, Silvino, muito bom! Como a gente já sabe, você está no lugar errado, deveria estar ao lado desses que citou acima (Machado, Cruz e Souza, Paulo Lins)... suryapombo@hotmail.com

Silvano Araujo - BRILHANTE, SILVINO!!! QUEM É NEGRO SABE DO QUE VOCÊ ESÁ FALANDO¡¡¡ silvanoars@hotmail.com

Savio Souza - Silvino, queria muito ouvir a sua opinião sobre a Africa. Parabéns pelo artigo. Na mosca. Abraço do Sávio saviosz@bol.com.br

Angelo Pende - Silvino, pelo pouco que eu conheço desse mercado em que você trabalha, agora é que você não consegue trabalho. É muito racismo! Quantos redatores negros existem além de você? Parabéns!!! angelo.pende@uol.com.br

Silvano Araújo - Meus parabens pelo texto Silvino. Acredito que a reação com naturalidade e frieza diante de situações racistas é um bom caminho, tendo em vista que a sociedade brasileira está "embrutecida" quanto a esta questão. O caminho é muito longo.
silvanoars@hotmail.com

Oubi Inaê Kibuko - Estou com sede e sem fôlego. Preciso de ar e de um copo d'água... Para quem está no primeiro ano de Publicidade e Propaganda, aos 50 anos, tento imaginar o que vou encontrar pela frente. De Cidade Tiradentes para o mundo... http://geocities.yahoo.com.br/oubitelapreta_fecap http://www.orkut.com/Profile.aspx?uid=9423985515427661312
oubitelapreta_fecap@yahoo.com.br

Bruno - Parabéns, ótimo texto. bamzin@gmail.com

 Silvino Ferreira Jr. - AGRADECIMENTOS E RESPOSTAS - Gostaria de agradecer a todos que enviaram mensagens (incluindo as muitas enviadas para o meu email). Quanto à pergunta do Ângelo Pende, tenho a dizer que conheci apenas um redator negro em São Paulo, o Celso, um rapaz do Pará que tentei ajudar a fazer uma pasta, quendo eu era redator da JWT. Não sei por onde anda. Quanto à agência Africa, penso o seguinte, Sávio: I - Da mesma forma que reclamamos por que frequentemente o estrangeiro olha para o Brasil de forma muito esteriotipada, é assim que a Africa olha o negro. Pode reparar: no site, no comercial e nos anúncios da própria agência, o negro tem sempre um aspecto tribal; II - se eu criasse uma agência só com sócios negros, 99% de funcionários negros, uma linda recpcionista loira e pussesse o nome de NORUEGA PROPAGANDA, eu seria, no mínimo, chamado de cínico; III- quanto ao título seria o seguinte: NIZAN REALIZA O SONHO DE MUITO COLONIZADOR EUROPEU: SER DONO DA ÁFRICA; IV - é um grande álibi, sem dúvida. silvino.silvas@gmail.com

Laura - Nossa. Muito bom, Silvino. Cheguei aqui pela Surya.
laurag.bhz@terra.com.br

Oubi Inaê Kibuko - Agende-se e divulgue para a sua lista de publicitários céticos, cuja carapuça serve esta sua brilhante matéria: Dia 13 de dezembro, terça-feira, a partir das 19 horas Festa de lançamento dos CADERNOS NEGROS, volume 28, contos afrobrasileiros Local: MASP - Avenida Paulista - Metro Trianon/Masp Entrada franca - Traje a seu gosto. Informações no site: www.quilombhoje.com.br - Cadastro. Aproveite e veja as fotos que produzimos no lançamento dos volumes 26: http://www.quilombhoje.com.br/cn26-album/index.htm e 27:http://www.quilombhoje.com.br/AlbumCn27/ Apoio virtual: Comunidade AMIGOS DOS CADERNOS NEGROS http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=5123173 CABEÇAS FALANTES ONLINE - informativo afro-cultural brasileiro http://geocities.yahoo.com.br/tamboresfalantes Que hoje e os próximos dias sejam plenos de luz para você, familiares, amigos!!! Oubi Inaê Kibuko http://geocities.yahoo.com.br/oubitelapreta_fecap Cidade Tiradentes para o mundo... oubitelapreta@yahoo.com.br

Rosangela Malachias - Silvino, obrigada. O seu belo texto é um fragmento preciso de pessoas que têm consciência negra. Parabéns! rmalachias@yahoo.com.br

Valter - Hi. Não sou publicitário (isso existe?). Qto. ao racismo, prefiria levar por outro atalho: tudo não seria coisa de colonizados que somos, compramos qualquer idéia desde que vinda de fora(portugueses, franceses, holandeses, ingleses, americanos e ainda chineses)? valter.ferraz@hotmail.com

Kátia Rebello -  Parabéns pelo texto, exemplar de ironia refinada própria de poucos redatores! Há momentos em que, para lidarmos com o mito da "democracia racial" e com o falsa noção de "mestiçagem" e de "igualdade" (como instrumentos de manutenção das estruturas de poder), só mesmo sendo muito, mas muuuito irônicos!