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O espaço é seu

O peru de Natal

18.12.06

Existem coisas nesse mundo que simplesmente não combinam.
Férias e engarrafamento. Minha avó e Bob Marley. Homem e cozinha.

Digam o que quiserem, mas esse papo de mulher achar lindo homem que entende de culinária é a grande enganação do milênio. O que elas acham lindo é ter uma coisa a menos pra fazer. Homem só devia entrar na cozinha para pegar cerveja na geladeira ou transar em cima da pia. Não é machismo. Desde os tempos pré-históricos, o homem das cavernas acordava de manhã cedo, colocava seu tacape na cintura e saía para caçar. Quando voltava, no final do dia, era a mulher das cavernas quem ia cozinhar. Não sei por que estão querendo mudar o próprio curso da humanidade.

Acontece que hoje é véspera de Natal e tive a infelicidade de chamar meu chefe e a esposa para jantar aqui em casa. E, logo dessa vez, prometi uma ceia daquelas. Logo dessa vez, ia pedir uma promoção na minha carreira. Logo dessa vez, a cozinheira faltou.

Que tragédia. Preciso pensar. Por que eu mesmo não faço o jantar? Já que consegui montar aquela esteira elétrica lendo o manual, também posso fazer um prato seguindo a receita.

Procuro nos cadernos que minha mãe deixou de herança para mim. “Peru ao Molho de Gengibre e Pimenta Verde”. Hum, parece bom. Diz aqui que era a refeição mais servida nos banquetes do Palácio de Versalhes. Pois bem, uma ceia de Natal digna da alta corte francesa.

Vamos aos ingredientes: 1 peru, 3 colheres de vinagre, 2 cálices de molho balsâmico, 2 colheres de gengibre ralado, 4 pitadas de açafrão. Meu Deus, isso está mais pra alquimia do que pra culinária. “Colocar o peru numa assadeira com as patas amarradas para cima”. Não, aí é covardia! Onde já se viu. Fazer uma coisa dessas com o pobre bicho? Ter que ir pro forno com as patas pra cima. Eu não posso fazer isso. Não. Vai ser assado de pé. Com a cabeça erguida e o peito estufado. Se duvidar, providencio até uma salva de tiros. E vai que a mulher do meu chefe pertencer a alguma instituição protetora dos animais. Aí minha promoção já era.

Tenho que parar de pensar nessas coisas e me concentrar na receita. “Colocar sal a gosto”. Mas a gosto de quem? Meu? Dos convidados? Ou do peru? É melhor acabar com essa frescura e preparar logo esse peru. Mas preciso ser sincero. Tem uma coisa que tô sentindo desde que comecei e não posso mais guardar só para mim. Tô com pena do peru. Pena mesmo. Se ele tivesse fatiado ou cortado em quadradinhos até seria fácil. Mas assim, inteirinho, não dá.

Começo a pensar na vida que ele levava. Vai ver que era um infeliz, que nunca era chamado pras festas do colégio. Estava sempre chorando pelos cantos. Era depressivo e adorava as músicas do Radiohead. Uma vida repleta de trocadilhos sem graça. Pobre peru. Sozinho, jogado no mundo. Uma existência quase insignificante.

A campainha toca. Aos prantos, vou abrir a porta. É meu chefe e a esposa. Segurando o pobre peru nos braços, peço minha demissão.


Por André Muhle - redator da Ampla / Recife e autor do blog www.quartafeira.zip.net

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