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Marcas parceiras da comunidade LGBTQIA+ não aceitam o ódio
À primeira vista, pode parecer simples transmitir uma mensagem de amor em uma campanha. Mas o ato pode se perder se uma onda carregada de fúria, preconceito e desinformação ganhar mais peso do que o posicionamento positivo. Quando se dá mais valor aos ataques e se esconde o que poderia ser bom, então, a escolha foi feita pelo ódio. Esse foi o recado dado pelo painel “When Beer Goes Viral: The Role of Brands & Media in Fighting Hate” no SXSW 2024.
No centro do debate estava o que aconteceu com a atriz, ativista e “influenciadora” trans Dylan Mulvaney, que, em abril do ano passado, precisou lidar com uma multidão de haters em suas redes após ela ter mostrado no Instagram uma lata de Bud Light que exibia seu rosto. Iniciou-se um boicote à marca, com apoio de nomes conhecidos entre o público norte-americano. E houve uma profusão de posts transfóbicos. A “influenciadora” recebeu ameaças de morte.
Dylan teve de lidar com uma recente onda de ódio por causa de um post que fez sobre o Dia da Mulher, em que aparece em fotos e vídeo com Lady Gaga. A cantora e atriz foi às redes nesta segunda-feira, 11, para se posicionar em defesa contundente da ativista e da comunidade trans (veja mais abaixo).
No caso da Bud Light, não se viu defesa em nome de Dylan. A virulência das mensagens e o anunciado boicote pelos haters impactou as vendas. Com isso, a AB Inbev, dona da marca de cerveja, trocou a liderança da marketing e resolveu divulgar uma resposta pública, na qual afirmou que nunca pretenderam “fazer parte de uma discussão que divide as pessoas” e que o negócio da empresa é “reunir as pessoas para tomar uma cerveja”.
Não havia menção a Dylan. Segundo a “influenciadora”, ela não foi procurada pela companhia com a oferta de apoio para aquela situação difícil e assustadora.
Se a marca pretendeu estabelecer conexão com a comunidade LGBTQIA+ a partir da ação com Dylan, que tem atualmente 10,2 milhões de seguidores no TikTok e mais 1,7 milhão no Instagram, a sequência dos acontecimentos derrubou a estratégia, para dizer o mínimo. A Human Rights Campaign (HRC), organização de direitos civis dos EUA com mais de três milhões de integrantes, retirou a companhia do relatório Corporate Equality Index, que avalia, entre outros critérios, políticas das empresas relacionadas ao bem-estar de funcionários da comunidade LGTQIA+. As corporações bem pontuadas conquistam uma certificação de “Best place to work”.
A entidade tomou a medida em função da maneira como a fabricante de cerveja lidou com os ataques transfóbicos, praticamente negando a decisão de marketing que havia adotado antes da onda de ódio. Até então, a AB Inbev tinha a nota máxima.
Retrocesso
No painel do SXSW 2024, Kelley Robinson, presidente da HRC, pontuou que a sociedade parece estar andando para trás. Ela lembrou que, em 2015, foi aprovado o casamento igualitário e a Casa Branca se embrulhou em uma bandeira do arco-íris. “Mas nos últimos anos, especialmente para o público queer e trans, parece haver uma regressão. Voltamos a ser empurrados para o armário. A HRC declarou estado de emergência nacional pela primeira vez no ano passado em resposta ao aumento horrível de propostas anti-LGBTQ+ na legislação. Este ano já vimos mais de 400 projetos de lei contra a nossa comunidade. E há, ainda por cima, a violência principalmente contra pessoas trans e não binárias. Contra mulheres negras trans ela está em níveis astronômicos”, alertou.
Kelley salientou que esse quadro está se estabelecendo em um momento em que nunca houve tanta gente se assumindo. E acrescentou: 30% da geração Z se identificam como integrantes da comunidade LGBTQIA+.
Em seguida, ela pediu que Dylan relatasse como se sentiu no ano passado diante das mensagens de ódio que recebeu após a ação para a Bud Light. “Venho do mundo do teatro e da Broadway e a criação de conteúdo realmente era algo novo para mim e me dava muita alegria. Ver todo o ódio que veio apenas por uma campanha no Instagram foi bastante desalentador. Mas, então, a coisa se tornou muito real, com pessoas aparecendo na frente da minha casa, com gente me seguindo e assediando em público. Nunca teria pensado que isso faria parte da minha vida diária. E eu nunca desejaria isso para ninguém”, contou.
Nesta terça-feira, 12, Dylan comemora seu segundo ano como mulher. Embora se sentisse menina desde os quatro anos, ela viveu um longo tempo “no gênero incorreto”. Ou seja, a atriz ainda estava vivendo muitas descobertas em sua vida. Ela contou que estava usando as redes sociais como uma forma de encontrar alegria e sua feminilidade, compartilhando suas experiências e construindo uma comunidade.
Com o que se passou após a campanha, ela se sentiu obrigada a se reconstruir. Porém, Dylan também percebeu que os efeitos da onda de ódio impactavam outras pessoas. “Acho ainda mais assustador saber que um vídeo que fiz em colaboração com uma marca tenha efeitos importantes para o restante da comunidade trans. Precisamos pensar sobre como essas ações nos afetam”, acrescentou.
Como ser bom parceiro
Convidado do painel, Aaron Walton, cofundador e CEO da Walton Isaacson, agência de publicidade com escritórios em Los Angeles, Chicago, Dallas e Nova York - e que tem como sócio a lenda do basquete Earvin “Magic” Johnson -, é o primeiro profissional declaradamente gay a ser homenageado com o Hall of Fame da American Advertising Federation, honraria atribuída em 2023. Aaron, que iniciou sua carreira como funcionário da PepsiCo, na área de gestão de marca, chamou atenção para a importância de as marcas se envolverem da maneira certa com a comunidade. O que isso quer dizer? “Bons parceiros não estão presentes apenas nos bons momentos. Bons parceiros existem quando uma comunidade como a nossa está sob ataque”, disse.
Ele mencionou uma pesquisa recente feita pela organização de direitos civis Glad (GLBTQ Legal Advocates & Defenders) com pessoas adultas que não são LGBTQIA+. Os dados mostram que 70% desse público consideram importante que as marcas sejam claras quanto a suas políticas de apoio à comunidade. Já entre a população LGBTQIA+, outro estudo revela o quanto ela está atenta ao posicionamento das empresas. De acordo com Aaron, 89% dessas pessoas estão de olho nas companhias que apoiam a diversidade e 65% manifestam intenção de boicotar ou relataram já ter boicotado marcas que se colocaram contrárias à comunidade.
Mais um número foi apresentado por Aaron e este se refere ao lado financeiro do negócio. A população LGBTQIA+ é dona de um poder de compra calculado em US$ 3,9 bilhões. “Qualquer empresa que queira ser uma marca do futuro não terá sucesso se ignorar esse consumidor. Como alguém que ajuda as marcas a crescer e a vender mais, preciso abordar a realidade dos dados”. E emendou: “Mas estou otimista em relação a algumas marcas que estão realmente fazendo a coisa certa, apesar dos ventos políticos”. Ele mencionou Levi's e North Face como exemplos.
E é claro que não basta ter boas intenções. Se a marca quiser ser realmente parceira da comunidade, então ela precisa ter em mente que se trata de uma jornada contínua, e não restrita ao Mês do Orgulho ou em situações pontuais. “Eu sou negro e gay 365 dias por ano, e não somente em fevereiro ou junho. Se você quer minha fidelidade, você precisa falar comigo nos 365 dias”, destacou Aaron.
É essencial lidar com a lacuna que existe entre o desejo de uma empresa fazer a coisa certa e sua capacidade de realmente fazer a coisa certa, principalmente “quando a temperatura está alta”. E isso pode significar enfrentar mensagens de ódio.
A recomendação é que as marcas não se desviem de seus valores. Dos valores que veiculam na publicidade e que foram estabelecidos nas políticas da organização. “Valores são valores. Eles representam quem somos. É isso que devemos defender”, completou
Outra medida primordial é ter um ambiente saudável e seguro para a comunidade LGBTQIA+ dentro da companhia. Afinal, o apoio se faz necessário não apenas quando se pensa no público como consumidor, mas também como funcionário.
Também convidada para o painel, a jornalista Jo Yurcaba, da NBC Out, área dedicada aos temas LGBTQIA organizada pela NBC News Digital, declarou que a mídia pode contribuir ao informar mais a população sobre os problemas que atingem a comunidade. O ponto é que, mesmo no jornalismo, muitas vezes dados errados ou mal apurados são passados adiante, sem contestação. E isso acontece quando se discutem alguns dos projetos de lei que afetam a comunidade.
Jo salientou que o simples cumprimento do ofício, de checar informações, já ajudaria. Mas, além disso, ela observou que é fundamental dar voz às pessoas, o que também parece óbvio, mas que nem sempre é feito.
Criação de conteúdo
Dylan falou do posicionamento das marcas em situações como a que passou. Algumas que falavam antes com ela, ficaram em silêncio. Nesse sentido, a atriz se sentiu só, enquanto a violência continuava. “Às vezes, essas marcas precisam se apresentar para que as pessoas saibam que o que aconteceu não foi ok”, comentou.
Pelo lado da criação de conteúdo, Dylan defendeu que, mais do que nunca, qualquer talento queer ou trans precisa se comunicar com as pessoas por trás das campanhas. Muitas vezes, quando uma empresa cria uma estratégia, não há nenhuma pessoa trans ou queer na equipe moldando o conteúdo ou discutindo o briefing.
“Muito do que quero fazer daqui para frente é realmente criar relacionamentos e ter conversas”, acrescentou. Ela pretende mostrar que é necessário uma etapa extra ao se criar uma estratégia com um “influenciador” trans, para que se conheça de fato quem é aquele talento e o que gostaria de divulgar ao mundo. Esse passo pode tornar tudo muito mais tranquilo. “Se as coisas derem errado, já existe uma comunicação (entre as partes). É preciso existir um nível de confiança. Eu nunca pensei que deveria escrever num contrato: ‘em caso de boicote, isto e isto e isto vão acontecer’. É aí que estamos agora”.
Aaron complementou que as companhias precisam parar de recompensar o comportamento errado. “E o que acaba acontecendo quando a empresa cede ao medo e quando começa a priorizar o ódio e o negativo versus o amor e a comunidade. Quem fizer isso, vai perder. Não é apenas a comunidade que a marca perde. Ele perde os aliados dessa comunidade”.
Ao fechar o painel, Dylan observou que campanhas e conteúdos para a mídia não necessitam ser exclusivamente sobre as questões que a comunidade enfrenta. As marcas podem sair ganhando se tocarem em outros aspectos. “Eu gostaria de ver mais a alegria trans”, declarou. “Nós precisamos dessa alegria trans no marketing também”.
Dia da Mulher
No dia 08 de março, Dylan publicou um post no Instagram com imagens feitas em estúdio com Lady Gaga. As duas celebravam a data. Havia uma frase: “Feliz Dia Internacional da Mulher”. Mas choveram comentários transfóbicos a tal ponto que Lady Gaga reproduziu uma das fotos em seu perfil e escreveu um incisivo texto sobre o ódio.
“É terrível para mim que um post sobre o Dia da Mulher feito por Dylan Mulvaney e por mim seja recebido com tanta amargura e ódio. Quando vejo um jornal noticiando o ódio, mas chamando-o de ‘reação’, sinto que é importante esclarecer que ódio é ódio e que este tipo de ódio é violência. ‘Backlash’ implicaria que as pessoas que amam ou respeitam Dylan e me respeitam não gostaram de algo que fizemos. Isso não é reação. Isso é ódio.
Mas não é surpreendente, dado o imenso trabalho que ainda temos de fazer como sociedade para abrir espaço para que as vidas de pessoas trans sejam valorizadas e defendidas por todos nós. Sinto-me muito protetora neste momento, não apenas com Dylan, mas com a comunidade trans, que continua a liderar o caminho com sua infinita graça e inspiração diante da constante degradação, intolerância e violência física, verbal e mental.
Certamente não falo por esta comunidade, mas tenho algo a dizer. Espero que todas as mulheres se unam para homenagear TODAS nós pelo Dia Internacional da Mulher, e que possamos fazer isso sempre até O DIA em que todas as mulheres sejam celebradas igualmente. Que todas as pessoas sejam celebradas igualmente. Um dia em que pessoas de todas as identidades de gênero são celebradas em qualquer feriado que lhes diga respeito. Porque pessoas de todas as identidades de gênero e raças merecem paz e dignidade.
Que todos possamos nos unir e sermos amorosos, tolerantes, calorosos e acolhedores. Que todos possamos defender e honrar a complexidade e o desafio da vida trans – que não conhecemos, mas que podemos procurar compreender e ter compaixão. Amo demais as pessoas para permitir que o ódio seja chamado de ‘reação’. As pessoas merecem algo melhor.”
A cobertura do SXSW 2024 pelo Clubeonline é um oferecimento exclusivo da Corazon Filmes (@corazonfilmes).