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Por Erick Rosa, redator da Leo Burnett de Lisboa
(nota da redação: o erick não usa letras maiúsculas)
o vinho de 4 euros e o fígado rosado
não entendo picas de vinho. sei mais ou menos a diferença entre um tipo de uva e outro. quando tomo um vinho que eu curti, volto a pedir o mesmo. sei que um "sangue de boi", aqueles vinhos em garrafas de 20 litros com aquele trançado de palha ao redor da garrafa não é um bordeaux. sei o basicão. sei evitar uma dor de cabeça na manhã seguinte. já assisti ao documentário mondovino e o filme sideways. nunca bochechei vinho e cuspi no copo para comentar do sabor aveludado e dos tons de tanino. quebro um galho. o que nos leva ao tema deste textinho: o vinho de 4 euros. entre 2,99 e 6,99. na média, 4 mangos, 4 euros. os mesmos vinhos que eu comprava no brasil, em são paulo, e que lá custavam entre 30 e 50 reais, aqui custam 4 euros. simples assim. varia um euro para cima. um euro para baixo. se você tem um fígado daqueles rosados, saudáveis, o seu lugar é aqui. pra tomar taças cheias no almoço, taças que transbordam no jantar. com a casa que eu aluguei, veio de brinde um rack daqueles de guardar vinhos. tudo aqui conspira para você colaborar com o aumento do consumo per capita de vinho dos portugueses. existem vários motivos para o preço dos vinhos beirar os 4 euros. portugal é o maior produtor intergaláctico de cortiça para rolhas de garrafas de vinho. Proporcionalmente, pelo tamanho da área que ocupa no mapa-mundi, é um dos maiores produtores de vinho, o que continua depois do jantar, com o vinho do porto. se você curte vinhos, se carrega na bolsa um recorte de jornal com alguma notícia de algum estudo que diz que vinho faz bem para o coração, visite portugal. passe uma, duas semanas por aqui. aproveite o clima. aproveite a açorda de gambas. mas aproveite, principalmente, o vinho de 4 euros.
9.7 de cada 10 portugueses fumam.
isto é um fato. você vai trabalhar e volta para casa com a impressão de que veio da boate. você vai almoçar e volta para casa cheirando a despedida de solteiro. você vai jantar e volta defumado. você se torna um fumante. eu devo fumar uns dois cigarros por dia sem querer. fácil. e aí você pergunta, mas, erick, os cigarros daí não têm aqueles adesivos com foto de pulmão carvão, dentes podres? não, os cigarros daqui têm um adesivo gigante que diz fumar mata! fonte grande. daquelas que se pode ler a distância. os portugueses fumam pra cacete. quando o metrô ameaça chegar na estação, basta olhar para o lado para ver um monte de gente já com um cigarro sambando preso nos lábios. e, segundos depois, a escada rolante fica parecendo um show do U2 durante "with or withou you. uma caraiada de isqueiros pipocam acendendo os cigarros. dependendo da música que está tocando no sistema de som do metrô, dá até vontade de chorar. de emoção, não da fumaça nos olhos. o dia em que proibirem o cigarro nos bares ou restaurantes daqui, este país pega fogo. é, porque, pelo o que eu notei aqui, todos os restaurantes são divididos em fumantes para caralho e fumo apenas 3 cigarros por refeição. e não sei se é pela combinação de doses cavalares de azeite, vinho e caminhadas pelas ladeiras da cidade, mas todos aparentam estar com a saúde perfeita. impressionante. 9.7 de cada 10 portugueses fumam. você vai trabalhar e volta para casa pensando alguma história caso a sua mulher não acredite que você estava mesmo trabalhando e sim na noitada mais selvagem de lisboa.
liedson e a teoria do pastel de nata.
a teoria do pastel de nata é simples. o pastel de nata é mais gostoso aqui em portugal do que aí no brasil. os ingredientes, pelo menos na teoria, são os mesmos. mas alguma coisa faz com que os pastéis de nata daqui acabem com os daí. espanquem, cubram os pastéis de nata feitos no brasil de porrada. não tem conversa. não tem putaria. não tem nacionalismo nem torcida. é melhor aqui e pronto. bom, mas quem é ou o que é liedson? o liedson, para quem não sabe, jogava no flamengo e no corinthians aí no brasil. atacante. camisa 9. jogador nota 5,5 aí. e isso, com boa vontade. nada demais. não me lembro de nenhuma jogada memorável do fêla. acho que nunca foi cogitado para jogar na seleção brasileira. no flamengo, vivia no banco. mas aqui, aqui o cara é artilheiro isolado do campeonato português. o cara é ídolo. já vi até livro tipo autobiografia nas livrarias: liedson, minha vida, minhas palavras. Caceta, como é que o liedson aprendeu a jogar bola? impressionante. e não é porque os portugueses jogam pior. não, tá cheio de estrangeiros aqui. portugal foi para as semifinais na copa da alemanha. o brasil, não. ou seja, o campeonato é duro. e o liedson brilha. como nunca brilhou no brasil. no meu flamengo. fêla da puta. que porra aconteceu com o liedson? como ele foi virar craque da noite para o dia? capa de jornal? será o ar? será a água? deve ser como pastel de nata. é a teoria do pastel de nata. os mesmos ingredientes que, por algum motivo, funcionam melhor aqui em portugal do que aí no brasil.
o buraco negro da ikea.
a ikea daqui é umas vinte e seis vezes do tamanho da tok&stok. o preço, mais ou menos metade. e é isso que fode. o tamanho da loja e o tamanhinho dos preços. é um buraco negro. daqueles que você entra segunda e sai quarta-feira. é preocupante. a ikea é um daqueles lugares em que a mulher do alto-falante volta e meia avisa pelas caixas de som: "pelo amor de deus, o dono do adolescente moreno com uma camisa do ac/dc preta, favor aparecer na recepção para resgatá-lo!" você começa a namorar uma poltrona, se aproxima, olha o preço, vê uma que está logo ao lado, vê outra que está ao lado. continua andando, esbarra numa senhora portuguesa e pede desculpas, e aí já vê que você está no corredor dos sofás, olha preço, olha cor, olha modelo, opa, estamos agora vendo armários, cozinha, banheiro e, quando você olha para o lado... cadê a sua mulher? e você se lembra que a última vez que a viu, estava comentando sobre uma cadeira. a ikea daqui é foda. fui três vezes no total. é como o louvre. como a disney. não dá pra ver de uma só vez. tem que ir duas, três vezes. ah, e tem que ir combinado de que a sua mulher não vai brigar com você e você não vai brigar com ela. é, porque você vai cismar em comprar uma poltrona zambers que não cabe na sala. ela vai cismar em comprar o kit cozinha 1, 2 e 3. você vai querer a luminária de três metros de altura. ela vai querer o tapete de meia tonelada. vocês vão marcar de se encontrar nos talheres. mas só vão se encontrar nas caixinhas de palha, de acrílico, de madeira, dos designers suecos que ganharam o prêmio nobel. Mas, no final, tudo dá certo. é só pagar mais 80 mangos, euros, pros caras entregarem e montarem na sua casa. e todos vivem felizes para sempre. mas isso, é claro, se não se perderem para sempre no buraco negro da ikea.
sportv em lisboa e a escalação do celtic rangers.
aqui em portugal, também são dois canais sportv. assim, com a mesma grafia que a nossa. não são da globo. mas também têm monopólio sobre todo e qualquer programa de esporte interessante. do campeonato ibérico de bocha a final dos campeonatos locais. mas os caras são bem mais espertos que a globosat, a net, a globo. aí no brasil, você assina o pacote cocô e vem a sportv. os dois. aqui você assina o pacote diamante eterno e nada. quer assistir aos jogos da liga dos campeões? tem que pagar mais 30 euros por mês para ter sportv. isso, quando o pacote diamante eterno custa 32. ou seja, você paga 32 euros para ter 50 canais. e 62 euros para ter 52. algo por aí. sugestão: se você estiver planejando morar nessas bandas, decore a escalação completa de uns três times europeus. do goleiro ao atacante reserva. aí, quando você chegar na lojinha para fazer a assinatura e o fêla da puta do outro lado do balcão revelar o esqueminha da sportv, você olha para a sua mulher e diz, com a maior naturalidade, que você não consegue viver sem os jogos do celtic rangers da liga escocesa. é, tem que ser uma liga dessas bem sinistras para ela sentir o tamanho da sua paixão pelo futebol europeu. um time daqueles que até o carinha do outro lado do balcão vai se levantar e bater palmas em câmera lenta pra você. e aí, só para não ter dúvida de que vale a pena pagar o dobro por mais dois canais que a sua mulher nunca vai assistir, você fala a escalação do dínamo de moscou. sua mulher vai respirar fundo e pensar como tem um marido/namorado que não consegue mesmo viver sem esses canais. se der mole, vai até sentir uma pontinha de inveja por não ter uma paixão, um hobby como você. vai por mim. nenhum ah, porque eu gosto de futebol... convence uma mulher a pagar o dobro por mais dois canais. decora a porra da escalação do celtic rangers, caráio, não me venha com real madrid que até ela sabe.
a dança das cadeiras no ônibus 58.
de cada 10 lisboetas, uns 7.4 são idosos. um dado carregado no exagero, mas que não deixa de ser quase verdade. e que caráio isso tem a ver com o título deste textinho? bom, hoje foi a primeira vez que eu peguei o buzum, o ônibus, o auto-carro, como eles chamam, para o trabalho. e, como todo ônibus, os daqui também têm uns lugares reservados para idosos. nada mais justo. mas, o que é engraçado aqui, é que, como tem um grande número de idosos, não existem lugares para todos nos ônibus. (é, o fêla da puta que desenhou o ônibus daqui não reservou o número certo. o número necessário de cadeiras para os idosos. elas são mais baixas e azuis, eu acho.) então, o que é engraçado aqui é a dança das cadeiras. uma dança sem a música que pára. a dança das cadeiras acontece toda vez que o ônibus pára. é um tal de pode sentar-se, senhora!, o senhor não quer o meu lugar?!, e levanta uma mãe e cede o lugar para uma senhora que antes estava em pé, mas que já na próxima parada oferece o lugar para um senhor um tiquinho mais idoso que ela. e este senhor, já cheio de segundas intenções, recusa o lugar, que vai para um outro senhor que acaba de entrar. e a cada parada, a cena se repete. é uma senhora que vem correndo do final do ônibus para pegar uma cadeira especial que se abriu. é um senhor que se recusa a ser considerado idoso e recusa a cadeira com uma cara como quem grita: vai dar meia hora de bunda, eu sou mais velho que você mas não exagera. e tudo isso acontece com uma harmonia impressionante. como um relógio. gente se misturando num zig-zag, trocando lugares, oferecendo, gesticulando, às vezes apenas com um olhar. tudo isso enquanto o auto-carro de número 58 faz uma curva fechada e chega na praça de camões. e eu, bem, eu quase perco o meu ponto observando a tiazinha que fulmina com os olhos uma adolescente que se recusava se levantar e ceder a cadeira para ela. a dança das cadeiras no ônibus 58.
Erick Rosa é redator da Leo Burnett de Lisboa e faz sua estréia na seção Passaporte
erick.rosa@leoburnett.pt