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Festival do Clube 2019

A hora da verdade dos documentários

01.10.19

Em um cenário em que se discutem os rumos da indústria audiovisual frente a manifestações do governo federal em alterar dispositivos que fomentam o setor (leia aqui sobre o debate “O futuro do audiovisual no Brasil”), questões sociopolíticas entraram nas discussões do painel “A hora e a vez dos documentários”, no Festival do Clube de Criação 2019.

A cineasta Camila de Moraes, diretora de “O Caso do Homem Errado” (2017) e uma das debatedoras, contou que em seus filmes abordam as mazelas sofridas pela população negra, em muitos casos pelas mãos do Estado. Foi o que aconteceu com a obra que a lançou no mercado: a história de Júlio César, homem inocente executado pela Polícia Militar de Porto Alegre 30 anos atrás.

A gente vive num país racista, o que leva a nosso primeiro longa, o caso do homem errado, em que a gente fala do genocídio da juventude negra”. Para ela, documentários são ferramenta para mostrar essa realidade.

De acordo com Camila, o preconceito também permeia a indústria audiovisual. A falta de apoio para exibir “O Caso do Homem Errado” em festivais a levou a veicular seu filme no circuito comercial. A decisão a fez tornar-se a segunda mulher negra a ter uma produção exibida em salas comerciais de cinema – Adélia Sampaio foi a primeira, com “Amor Maldito” de 1984.

Racismo também foi o tema de “Menino 23” (2016), documentário de Belisario Franco, sócio-fundador e diretor geral da Giros Filmes. A obra trata da história de meninos negros escravizados durante o Estado Novo de Getúlio Vargas, em uma fazenda de empresários simpatizantes do nazismo. O filme de Belisario teve como base uma tese de doutorado do historiador Sidney Aguiar Filho.

O “menino 23” do documentário é Aloisio Silva, um dos 50 meninos de que o filme fala. Belisario afirmou que, durante a produção do documentário, levou Aloisio ao orfanato de onde foi retirado 70 anos antes. “Ali o filme se fez. Ele é baseado em uma tese de doutorado que é brilhante, mas é incomparável com uma cena em termos do impacto de você estar dentro da pessoa, daquele homem revivendo aquela história”.

Política pautou diversas obras da cineasta Lúcia Murat, famosa por seus documentários sobre o período da ditadura militar no Brasil entre 1964 e 1985, como seu longa de estreia “Que Bom Te Ver Viva” (1989). Lúcia comentou sobre como recorre a atores em algumas obras, apesar de documentais. É o caso de Irene Ravache em “Que Bom Te Ver Viva” e Caio Blat em “Uma Longa Viagem” (2011) - ele recebeu prêmio de ator no Festival de Gramado.

No ‘Que Bom Te Ver Viva’, para reproduzir aquela experiência que tive, de que eu tinha sido torturada, para reproduzir essa verdade, precisava de uma atriz falando das loucuras que eu tinha pensado”, disse.

Cofundador e sócio da Base#1 Filmes, André Fran trouxe sua experiência de viagens a lugares considerados polêmicos. Pelo programa documental “Não Conta Lá em Casa”, do Multishow, ele esteve no Iraque, Irã e na Coréia do Norte. Ele apontou a verdade como foco dos documentários, gênero que vem conquistando mais espaço recentemente, até pelo crescimento das plataformas de streaming e VOD.

Vimos um Irã hospitaleiro, um povo extremamente educado, estrutura desenvolvida, viajamos em segurança total. A imagem que a gente trouxe é totalmente contrária a que as pessoas tinham, de um Irã fundamentalista com extremistas”, disse. Fran afirmou que houve mesmo certa resistência do canal, com perguntas sobre onde estavam as explosões e bombas. Mas não havia isso. “A mensagem que a gente estava trazendo era muito mais legal, quebrando paradigmas, mostrando a realidade como ela é, a verdade por trás daquelas histórias com a interpretação do nosso olhar”.

O tema da verdade foi comentado pela diretora e roteirista Sandra Kogut, que mediou o painel. Ao filmar “Adieu Monde” (1997), produzido em uma vila na região dos Pirineus, na Europa, ela percebeu que os moradores estavam criando uma imagem pitoresca da região para alimentar o turismo local.

No verão, os turistas iam lá e tiravam fotos deles porque eram autênticos. Ao longo do ano, antropólogos faziam teses sobre eles porque eram autênticos. Então, eles se congelaram naquela imagem. Viraram atores de si mesmos”, explicou. “Entendi que, às vezes, ao olhar para alguém, botar uma câmera e fazer uma pergunta frontal, não necessariamente você vai chegar a uma coisa verdadeira”.

No documentário, Sandra narrou a construção dos moradores, o que compreendeu a partir de seu olhar. Como disse Belisario Franco, o cinema permite “as coisas se revelarem na sua frente”.

Danilo Telles

Festival do Clube 2019

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