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O Espaço é Seu

Procuram-se mulheres na criação (Nina Lucato)

03.03.21

Hoje, existe um forte avanço na inclusão de mulheres na publicidade, especialmente na área de criação. O que há pouco tempo ainda era algo pouco visto, nos dias atuais mostra uma grande evolução e temos muito a comemorar.

Entretanto, é certo que ainda há muito a se fazer em relação ao tema. Hoje, existem cerca de 26% de mulheres nas equipes de criação das agências brasileiras (dados do Instituto More Grls). Ainda é pouco.

A busca por boas profissionais de criação não é tarefa fácil. Toda semana reservo uma parte do meu tempo para olhar portfólios e é notável que cerca de 90% dos que recebo ainda são de homens. E daí me lembro dos meus (bons) tempos de faculdade. Me arrisco a dizer que, dos 250 alunos do ano em que me formei, somente 5 mulheres escolheram a especialização de criação (incluindo eu). Me pergunto por quê.

O trabalho do criativo numa agência é muito exaustivo. Não apenas pelas horas de trabalho, mas porque é um exercício diário de resiliência. A frustração é parte do nosso cotidiano. Expor ideias, por mais simples que possam parecer, é fruto de muito trabalho. E é muito íntimo. Ver uma ideia ser reprovada é um teste de resistência psicológica e exige uma dose de coragem de se expor.

Isso me leva a crer que as mulheres, até certo tempo atrás, não se arriscavam a expor suas ideias criativas. Talvez por isso poucas se sentissem à vontade de perseguir uma carreira na criação publicitária. Talvez nunca tenham sido encorajadas. Talvez enxergassem um mercado dominado por homens.

Como uma das poucas mulheres na criação quando iniciei minha carreira, sempre assumi um comportamento maismasculinizado” por achar, instintivamente, que assim seria vista como uma profissional igualmente competente em relação aos homens que estavam lá. E, quando me tornei mãe, não foi diferente. Sempre fiz um esforço para que minha vida pessoal não “atrapalhasse” a vida profissional. Só mencionava minhas filhas em conversas quando era questionada. Delegava a função de levar e buscar na escola para que não tivesse que me ausentar mais cedo do trabalho. Marcava pediatra às 7h30 pra dar tempo de chegar no horário da primeira reunião do dia. Procurava nunca parecer cansada por passar as noites em claro cuidando de uma criança doente.

Daí veio a pandemia. E o isolamento obrigou todo mundo a se transformar.

Sem escola e sem apoio doméstico, aquela linha imaginária que eu havia traçado entre casa e agência deixou de existir. As conference calls passaram a ter constantemente duas intrusas. Hora da fruta, pausa pro almoço, pausa pra colocar aula online, hora do lanchinho, hora do cocô (sim, hora do cocô), brigas, acidentes. Meu trabalho foi invadido pela nova e bizarra rotina dessa nova condição que se impôs a todos. As mães enlouqueceram. Os incontáveis memes sobre o assunto refletem a situação. New York Times e Facebook fizeram ações e campanhas para demonstrar suporte às mães durante esse difícil período.

Os recentes debates sobre mais presença feminina nas agências, que por vezes parecem até exaustivos, trouxeram uma mudança de olhar geral. Mas o home office destrambelhado durante o isolamento que ainda estamos vivendo sedimentou algo que pra mim até pouco tempo atrás ainda era incerto: o fato de que, sim, é possível ser uma mulher e ainda por cima mãe na criação de uma agência. Percebo que a relação da vida pessoal e profissional pode ser muito mais líquida; que a quantidade de horas na agência não é sinônimo de produtividade; e que as dificuldades gerais tornam as pessoas mais empáticas e cuidadosas umas com as outras.

O confinamento, por mais irônico que possa parecer, me libertou. Hoje, não sinto necessidade de esconder que sou mulher, que sou mãe, nem de segmentar minha vida. E se antes uma mulher talvez tivesse receio de expor suas ideias, para uma mãe, a câmera aberta expõe uma intimidade familiar que supera qualquer ridículo.

Acredito que essa adaptação forçada traga um olhar mais compreensivo, para que as agências não desperdicem talentos de mulheres, ou mulheres com filhos, por medo de serem menos produtivas. Que os horários mais flexíveis possam atrair profissionais competentes que antes não conseguiam se adequar aos horários estendidos da criação. E que, em breve, possamos ter um número mais representativo de mulheres na criação das agências para inspirar estudantes a se arriscarem nessa profissão incrível.

Nina Lucato, diretora executiva de criação da TracyLocke

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