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Festival do Clube 2021

Uma cidade inteligente é necessariamente tecnológica?

29.09.21

Se criatividade, estratégia e tecnologia são pilares fundamentais da comunicação publicitária atual, isso também se aplica – ou deveria – a projetos que querem tornar nossas cidades cada vez mais inteligentes. Se antes da pandemia isso já era uma demanda, as mudanças da nossa relação com o espaço urbano nos últimos meses vieram potencializar necessidades e oportunidades nesse sentido, não importando o tamanho territorial ou a densidade demográfica do município.

No Festival do Clube 2021, o tema foi debatido no painel “Cidades inteligentes: mais necessárias do que nunca em um mundo pós-pandêmico?”, com presença de referências no assunto como Raquel Rolnik, urbanista e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), da USP; Ester Carro, presidente do Instituto Fazendinhando; Susanna Marchionni, CEO da Planet Smart City Brasil; Nina Scheliga, diretora de tecnologias sociais do Projeto Favela 3D / Gerando Falcões; e Carlos Henrique Vilela, cofundador do Festival de Inovação HackTown e CMO da Leucotron. A conversa teve mediação de Cleber Paradela, head of branding experience da 99, professor de pós-graduação em Inovação da ESPM e coordenador do Bootcamp Inteligência Digital da Miami Ad School.

Mas, afinal, o que é uma cidade? “Se tem um elemento que define o que é cidade é a dimensão pública e coletiva. Você está o tempo todo em uma densidade de diferentes. A característica histórica do ‘ser cidade’ é esse encontro. E não dá para pensar na cidade sem a parte política, da ‘pólis’”, contextualiza Raquel, um dos principais nomes da arquitetura e urbanismo no Brasil. Ela atuou como diretora de planejamento de São Paulo, foi secretária nacional de programas urbanos do Ministério das Cidades e relatora especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada.

Com um olhar focado nas comunidades, em especial a do Jardim Colombo e Paraisópolis, em São Paulo, Esther reforça a necessidade do conceito de pertencer, incluir e participar, abarcando o de inclusão em todos os sentidos. “É impossível pensar na cidade do futuro sem pensar em inclusão e diversidade, falando nas crianças, nos jovens, na mulher. Hoje vejo uma série de potências quando falamos no que é cidade, mas também uma série de desigualdades e problemas”, alerta a presidente do Fazendinhando – movimento de transformação física, cultural e social focado na recuperação de espaços públicos, por meio da arte, cultura e integração da comunidade.

Hoje, para irmos de uma ponta a outra de São Paulo, há uma série de dificuldades. Cadê a conexão da cidade formal com a informal?”, complementa Esther.

Nina Scheliga, da Gerando Falcões, que também atua com forte presença nas comunidades, destaca como a crise trazida pela covid-19 deu mais luz a dores latentes da cidade, em especial desse recorte muitas vezes abandonado pelo poder público. “A pandemia escancarou ainda mais algumas das desigualdades do Brasil e a fragilidade que existe nas favelas, muitas vezes sobre ter ou não o que comer. Isso mostra que a complexidade da pobreza que a gente tem nas cidades, especialmente nesses ambientes, é enorme”, relata.

O projeto da Favela 3D – nome inspirado nos “Ds” de Dignos, Digitais e Desenvolvidos – procura aplicar diversas metodologias inovadoras para promover impacto social positivo em tópicos como geração de renda, desenvolvimento social e urbanismo.

Com projeto 100% privado, a Planet Smart City Brasil tem como premissa construir bairros e cidades inteligentes. Porém, ao contrário de conceitos geralmente aplicados no País – com foco em alta renda e normalmente fechados por sistemas de segurança – a proposta é de locais sustentáveis e, principalmente, acessíveis. “Não acreditamos nessa ideia de espaços fechados, mas sim da democratização da infraestrutura”, explica Susanna.

Durante o painel, ela falou sobre o primeiro projeto da empresa, no Ceará, próximo a uma favela e que, em vez de espantar seus moradores, procurou garantir um espaço acolhedor e positivo para todo o entorno. “O parque, o jardim, é tudo ‘nosso’, gerando uma sensação de pertencimento – o que muda a forma de pensar. Crianças da favela têm acesso ao cinema, à biblioteca, coisas que não tinham antes. E o mais bacana é o impacto que isso gera em termos de segurança”.

Carlos Henrique contou sua experiência com o HackTown e sua origem em Santa Rita do Sapucaí, no sul de Minas Gerais. Com 40 mil habitantes, ela se tornou há tempos um dos principais polos tecnológicos do Brasil. “A cidade cresceu em um contexto de privilégio, ligada aos barões do café”, disse. Foi com Luzia Rennó Moreira, que viajou o mundo, que ela teve uma importante transformação. Filha de um coronel, Luzia pôde estudar. Casada com um diplomata, ela fez diversas andanças. Numa delas, esteve em uma palestra onde ouviu que o futuro estava na eletrônica. Luzia usou toda sua influência para criar a primeira escola de eletrônica do Brasil em Santa Rita, onde nasceu.

A partir daí, a cidade virou um laboratório, especialmente ao unir população, poder público e privado, relatou Carlos Henrique. Paradela observou ainda que foi lá que surgiram algumas das principais inovações tecnológicas do Brasil, como a urna eletrônica, a TV digital, o 3G e o passaporte com chip.

E a tecnologia?

Cidades inteligentes precisam, obrigatoriamente, ser cidades tecnológicas? Para Raquel, mais do que a tecnologia, é preciso que seu uso seja feito com propósito, inteligência e efetividade.

É importante situar o debate sobre a tecnologia por ser um meio, e não o fim. Começo hoje aulas para o primeiro ano de Urbanismo sem ter um exemplo real e válido no Brasil de cidades do futuro. E por que a gente não as construiu? Porque as cidades do Brasil foram autoproduzidas pela população. Somos um país de posseiros e posseiras e temos uma ordem jurídico-urbanístico que parte dessa questão da posse. Temos dificuldade de construir o público, o comum, o de todo mundo – e a tecnologia acaba, em muitos casos, sendo usada nesse sentido”, disse a professora da FAU/ USP. “Como podemos reverter isso? Tendo a tecnologia como uma propriedade em comum, e não das empresas”, respondeu.

Segundo Susanna, é comum conectarem o conceito de cidade inteligente com tecnologia, mas não se trata apenas disso. “É preciso analisar se a tecnologia impacta de forma positiva na vida das pessoas. Temos em nossos projetos sensores para medir a qualidade do ar, da água, o gasto em gás, além de aplicativos que integram os moradores e podem vender produtos e serviços por lá”, comentou.

A empresa percebeu a falta de organização das pessoas nesse sentido. “Muitas vezes algo relativamente simples em tecnologia pode ajudar a resolver problemas e gerar renda. Ela não pode ser um muro, mas sim servir para simplificar as coisas”, analisou a CEO da Planet Smart City Brasil.

Com exemplos das comunidades, Nina e Ester reforçaram como a visão e aplicação tecnológica tem um viés muito mais particular nesses locais. “A gente fala de inclusão tecnológica, mas muitas vezes na favela não tem sinal, ou não há o serviço gratuito, ou o acesso a aparelhos decentes para se conectar. Como a gente leva a tecnologia para a favela para diminuir a desigualdade?”, questiona Nina.

Durante a pandemia, foi preciso descobrir rapidamente uma forma de chegar às comunidades em que atuam com ajuda emergencial. “A gente conseguiu uma parceria com a Ticket para entregar cartões com crédito para alimentação, em vez de enviar cestas básicas do Sudeste para todo o Brasil. Otimizamos a logística, injetamos dinheiro na comunidade e geramos uma sensação de dignidade, permitindo que cada um fosse ao mercado comprar o que quisesse e precisasse”, contou Nina.

O que facilitou muito o nosso trabalho durante o ápice da crise foram os diferentes grupos criados no WhatsApp entre os territórios, nos permitindo dialogar melhor com os moradores sobre as doações, passar recados importantes e informações fundamentais de saúde pública”, revelou Esther. “Vimos que também era preciso criar possibilidades de trabalho, de empreendimento etc. Então, nós começamos a criar cursos profissionalizantes à distância com foco nesses moradores, potencializando a força e a oportunidade de trabalho”, acrescentou.

Ao concluir a conversa, Paradela lembrou que “não dá para discutir o que é uma cidade inteligente sem abordar inclusão, diversidade, políticas públicas, tecnologia e a integração de todo o entorno”. Em suas palavras, há muita lição de casa para ser feita. Ainda assim, é bom ver que tem muita gente atuando nesse sentido.

Repique

Ao final do painel, três profissionais do mercado de comunicação analisaram o conteúdo dividindo seu ponto de vista sobre a questão. Trazendo a discussão para o universo das marcas, participaram James Scavone, sócio da Sincronicidade e fundador da Davinci Micromobilidade; Romero Cavalcanti, CCO da EnergyBBDO; e Melina Alves, fundadora e consultora de inovação da DUXcoworkers.

Para mim foi sempre uma busca conectar as campanhas e as marcas às cidades reais. Ando muito de metrô e bicicleta, não tenho carro há 15 anos, e, na perspectiva da calçada, a visão é outra”, afirmou Scavone. “Nós, que trabalhamos com marcas, temos falado muito de inclusão, que a diversidade da cidade é a coisa mais interessante, mas aproveitamos muito pouco. Trazer essa diversidade urbana, e até um pouco do seu caos, pode gerar um renascimento da cidade na propaganda”, completou.

Com background na educação, Melina comentou as dimensões pública e privada, lembrando as palavras de Raquel Rolnik. “No momento em que a gente está formando cabeças, é super importante fazer essas argumentações sobre a relação contratantes e prestadores de serviços”. Ela ponderou que, quando falamos de cidades, não tem como não falar do executivo e dos tomadores de decisão. “Como a Raquel disse, precisamos inverter essa questão para abraçar de forma mais justa a relação do cidadão com a cidade. Garantir um fair trade, um ganha-ganha, deixando isso mais visível”, pontuou.

A visão foi semelhante à de Cavalcanti, que puxou a força da equação entre o público e o privado como fundamental. “Entendo que o olhar da Raquel é muito importante e inspirador, desprendido do consumo. Ao mesmo tempo, a gente vê que, sem considerar a economia, a cidade morre”, concluiu.

Karan Novas, em colaboração para o Clube de Criação

Todos os painéis do Festival do Clube 2021, realizado entre os dias 22 e 23 de setembro, foram transmitidos pelo Globoplay. O evento deste ano foi gratuito.

O conteúdo do Festival já está disponível na plataforma de streaming - acesse a partir daqui.

Reveja a programação completa aqui.

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