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O Espaço é Seu

Publicitários de um produto só (Alexandre Catarino)

23.05.19

Publicitários de um produto só

Não falta muito para o mundo ganhar um santo publicitário. Temos trabalhado bastante por boas causas. Produzindo cases criativamente impecáveis, com muito talento envolvido, ganhando todos os prêmios possíveis.

E aí vem uma questão filosófica na minha cabeça: se nenhum festival premiasse campanhas para ONGs, será que nós, publicitários, nos empenharíamos tanto? Nós estamos mesmo colaborando com essas causas, ou as causas é que estão colaborando com nossas carreiras? Se a intenção é ajudar uma ONG a atingir determinado objetivo, conquistar esse objetivo já não seria um prêmio mais valioso do que qualquer Leão em Cannes?

O cara que teve a ideia do Médicos Sem Fronteiras não queria ganhar um prêmio. Não buscava um storytelling interessante para agradar a um corpo de jurados. Ele queria salvar vidas. Salvar de verdade. Para ele, o prêmio era a ideia funcionar.

Já no nosso caso, tenho a impressão de que estamos nos preocupando mais com o case do que com a causa. A gente se hipnotiza com a trilha, a fotografia, o storytelling, e ficamos cegos para o que interessa de verdade. Esquecemos de analisar com frieza se aquela ideia está mesmo ajudando alguém. Isso explica por que ainda não fomos canonizados. E me preocupa o referencial que fica para quem está chegando agora ao mercado. Por que alguém vai querer gastar talento fazendo um comercial para vender presunto, quando parece mais fácil colecionar prêmios com campanhas para salvar o mundo?

Acho legal lembrar aqui o que Neil Ferreira, grande redator que nos deixou há pouco tempo, ouviu um dia do dono da Sadia: "O seu comercial me ajudou a construir três fábricas." Era um comercial de presunto. Mas que, de certa forma, também ajudou a salvar um pouco o mundo, gerando emprego para um monte de gente. Ouvir o que Neil ouviu da Sadia vale mais que ganhar um Grand Prix em Cannes.

No entanto, preferimos muitas vezes eliminar a necessidade de passar nossas ideias pelo moedor de carne das hierarquias, das pesquisas, dos pré-testes. Preferimos continuar ali, no menu kids, em vez de amadurecer. Descartamos até o cliente, esse ser que só atrapalha, e nos contentamos com os projetos que, no fundo, precisam apenas da aprovação de uma única pessoa: nós mesmos.

Nós mesmos. Será que só sabemos vender esse produto?

Alexandre Catarino, Diretor de Criação da OpusMúltipla (Curitiba)

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