Acesso exclusivo para sócios corporativos

Ainda não é Sócio do Clube de Criação? Associe-se agora!
Acesso exclusivo para sócios corporativos
Ainda não é Sócio do Clube de Criação? Associe-se agora!
'Filme feito por IA é como bolacha cream cracker' (Laga Villanova)
Cinema – e até publicidade, quando bem-feita – não acontece dentro de um computador. Acontece no encontro. No olhar que muda no último segundo. No diretor que sente a cena e pede mais um take, dessa vez com algo inesperado. O ator reage a esse pedido. Interpreta. O fotógrafo e os operadores de câmera ajustam, tomam decisões no momento. E ali, juntos, encontram algo que ninguém havia previsto.
Criar imagens não é apenas produzir pixels. É provocar sentimentos. E isso ainda é privilégio humano. E, no fundo, todos sabemos disso, quando fazemos um bom trabalho.
Semanas atrás, as redes sociais foram tomadas por uma onda de imagens geradas por inteligência artificial no estilo do Studio Ghibli, transformando celebridades, cenários e pessoas comuns em ilustrações que evocavam as animações de Hayao Miyazaki. O fenômeno contrastou ironicamente com a visão do próprio Miyazaki, que sempre expressou profundo desprezo pela automação da arte. Ele chegou a chamar a IA na animação de “um insulto à própria vida”, um risco à criatividade humana.
Enquanto isso, a IA avança rapidamente, lançando um ponto de interrogação sobre o futuro das produções audiovisuais. Recentemente, brinquei com minha equipe, no início de um set, agradecendo mais uma oportunidade de abrir a câmera. “Será a última vez?”
Curiosamente, a hipersaturação de imagens geradas por IA, como no caso do Studio Ghibli, é quase instantânea. Move-se rápida e intensamente. Em poucos minutos, a magia se esvai. Sente-se algo estranho quando paramos para pensar. Os clássicos que duram gerações são um milagre porque carregam uma essência que a IA ainda não alcança. Nessa era da fácil reprodução, o que sobra em termos de sentido? E o que sobra para a publicidade? O que queremos dela no fim do dia?
Na publicidade muitas vezes estamos filmando a mesma coisa. O mesmo clichê revisitado. A cópia da cópia da cópia. Mas isso não significa fazer um bom trabalho. O trabalho é coletivo e envolve um grupo de pessoas, com diferentes habilidades, tentando chegar a um resultado comum. Vendemos coisas, vendemos emoção, uma risada ou sei lá o quê. Queremos entrar na vida das pessoas e criamos universos nos quais as marcas passam a existir. Coca-Cola, por exemplo, é muito mais que uma bebida gaseificada com açúcar. É Natal, infância, inocência, simplicidade, um amigo urso branco, refrescância. Sei lá. Um universo afetivo na mente do consumidor.
Sentada numa sala, Fernanda Montenegro fala diretamente para a câmera. Há uma aura nela, uma história em seu olhar, nas rugas do rosto, na textura de sua voz. Ela hesita, toma decisões. A IA, por enquanto, pode gerar rostos perfeitos, replicar vozes, criar imagens nítidas e até simular emoção. Mas nunca será Fernanda Montenegro. Nunca sentirá o peso de uma palavra dita no momento certo. Nunca interpretará de fato.
Nada do que vi de IA até o momento chegou perto de uma performance humana. Uma dança, uma lágrima, um sorriso, uma gargalhada. Por enquanto, a IA não toma decisões. Talvez nunca tome. A IA cria imagens como as de Harry Potter no jornal: meros quadros em movimento. O que criamos é outra coisa. Tem impacto. E esse impacto só acontece quando um ator toma decisões.
O mesmo ocorre com um estúdio de animação. Cada filme de Miyazaki leva anos para ser feito e precisa de centenas de profissionais envolvidos. O esforço de mais de um ano para quatro segundos de animação pode parecer exagerado para alguns, mas é esse compromisso com a excelência que faz de Miyazaki um mestre. O que vemos em seus filmes é um milagre do trabalho manual e coletivo humano. É tocante. Enche os olhos. É mágico.
Roger Deakins, famoso diretor de fotografia, diz que opera a câmera porque quer ver, em primeira mão, a performance de um grande ator. Ele sabe do privilégio que tem em presenciar esse milagre. O ator não toma suas decisões baseadas em um cálculo daquilo que seria mais provável estatisticamente. Pelo contrário, é imprevisível. Ele toma as decisões imerso no presente e naquilo que ele nem pode expressar com palavras. É um feeling, um instinto inesperado. A equipe e o set reagem a essa performance. E, se tudo der certo, ela estará registrada na câmera. Mas é no set que ela acontece – e não o contrário.
Talvez estejamos nos acostumando a um mundo onde a emoção é simulada, vazia e o encontro humano, descartável. Mas isso não parece estar nos fazendo bem. Cinema, arte – e até a boa propaganda – não são apenas estímulos para apertarmos um botão. São espaços de conexão, de fricção, de surpresa. Enquanto houver alguém que se emociona, que hesita antes de dizer uma palavra, que sente um frio na barriga ao criar algo novo – então, ainda haverá algo que a máquina não pode tocar.
A criação sem humanidade, num jogo de probabilidades de cartas marcadas, pode afetar profundamente a criatividade. E afetar diretamente as pessoas que têm algo a expressar. Pode ser como esses memes do Studio Ghibli, supervoláteis. Sem relevância alguma. Já sentimos esses efeitos de volatilidade em nossas vidas e nossas relações. Podemos experimentar a IA, nos deslumbrar com seus truques, testar possibilidades. Mas por enquanto são isso: truques baratos.
Um filme feito por IA, hoje, é como uma bolacha cream cracker. Tem a textura certa, o sabor básico, mas não oferece a profundidade, o sabor, o toque de algo realmente autêntico. Sem isso, é só um reflexo perfeito da forma, mas sem a alma que dá sentido ao todo. E até um negócio precisa ter essa alma.
Laga Villanova, diretor de cena da Barry Company
Leia texto anterior da seção "O Espaço é Seu", aqui.
Clube de Criação 50 Anos