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SXSW 2024

Conseguiremos resolver o problema das pessoas em situação de rua?

15.03.24

Um painel do SXSW 2024 discutiu um problema que cresce nos EUA e que também ganha proporções imensas no Brasil: as pessoas em situação de rua. Dados do Ipea divulgados em dezembro passado mostram que, em dez anos, a população sem-teto no país cresceu 935,31%, atingindo aproximadamente 227 mil pessoas.

Nos EUA, segundo o Departamento de Planejamento e Desenvolvimento Urbano do governo federal, existem 653 mil pessoas sem moradia em todo o território. O número de homeless aumentou 12% entre 2022 e 2023.

Com uma crise tão grave, o painel “Reimagining Future Cities Without Homelessness”, parte da trilha temática “2050”, chamou atenção do público do SXSW para algumas questões que devem ser consideradas quando se discute moradia popular e atendimento à população que não tem um lar. Moderado pela jornalista Jasmine Simpkins, da KTLA, o debate contou com as participações da congressista Maxine Waters, representante da Califórnia e integrante do partido Democrata; Jeff Olivet, diretor executivo da US Interagency Council on Homelessness (USICH), do governo federal; e Troy Vaughn, CEO da Los Angeles Mission, uma entidade que desenvolve projetos para atender a população sem-teto da cidade.

A primeira pergunta foi: por que o problema cresceu tanto? Há vários fatores. Um deles é o desemprego: se a pessoa não encontrar trabalho não terá meios de sobreviver decentemente. Fora esse caso, imagina-se muito que os homeless são indivíduos com alguma doença da mente, o que, de fato, é comum. Mas normalmente a população não pensa em motivos como a alta do custo de vida: a pessoa tem uma ocupação, mas com os alugueis caros e os custos de alimentos, eletricidade e outros itens elevados, não sobra dinheiro para pagar as contas.

A violência doméstica e a intolerância também levam jovens, principalmente os que se identificam como LGBTQIA+, e mulheres para as ruas, que muitas vezes fogem com seus filhos. A imigração é mais uma questão: quem entrou nos EUA e não tem outros familiares no país pode ficar sem apoio, diante de dificuldades, e sem abrigo. E há outra crise social: a de pessoas destruídas pelo vício em drogas como crack.

Troy disse que a pandemia de covid expôs a fraqueza dos EUA. E hoje a gravidade da falta de moradia está na nossa cara. O crescimento nos números de homeless por todo o país acusa o despreparo da nação para lidar com o problema.

Na opinião dos três especialistas, apesar do quadro atual, é possível acabar com a falta de moradia para todas essas pessoas. Mas é preciso um conjunto de medidas, sendo uma delas investimentos na construção de casas de preços populares.

Outra medida seria envolver os grandes bancos nessa questão, assunto que gerou a fúria da congressista Maxine. Aos 85 anos, ela disse que está cansada de brigar com as instituições que não disponibilizam financiamentos ou hipotecas acessíveis por não haver interesse em atender a porção mais carente da população com esse tipo de produto. “Nós passamos a ideia de que você é um cidadão melhor se consegue comprar uma casa”, observou. Sendo assim, por que não oferecer oportunidades para que essas camadas da sociedade possam realizar seu sonho? Seria fundamental, portanto, encontrar uma solução de financiamento.

Olivet destacou que é preciso mostrar para a população em geral que, se uma pessoa se torna homeless, isso está associado a uma falha do sistema, e não a uma falha individual. É um conceito importante. “Precisamos mostrar para a sociedade que ter uma casa é um direito humano básico. É como respirar, comer, ir para a escola. Esse entendimento não existe hoje”, afirmou.

Quando ele disse que a falta de moradia popular é uma falha do sistema, na verdade quis se referir a “múltiplos sistemas”.Como foi dito, existem vários fatores. E, para tratarmos dessa questão, precisamos envolver cada parte: moradia, saúde, educação, trabalho. Esses sistemas são desenvolvidos por pessoas, por decisores de políticas. Podemos definir novas diretrizes, diferentes políticas”, completou.

Sobre o déficit atual de moradia nos EUA, ele trouxe números que demonstram o tamanho do problema. Nos anos 1970, o país tinha um excedente de 300 mil casas de preços populares. Hoje, há um déficit de 7,3 milhões de unidades desse tipo de residência.

Segundo o Housing and Urban Development (HUD), departamento do governo federal, foram investidos quase US$ 500 milhões no ano passado ajudar diversas cidades, incluindo Austin, a lidar com a falta de abrigo e a falta de moradia rural. A Casa Branca e a USICH lançaram a Iniciativa ALL INside, reunindo distintas instâncias federais para reduzir burocracias que emperram processos para ajudar pessoas a sair das ruas. A Casa Branca informa que está priorizando o que chamou de maior causa do aumento de sem tetos: a falta de habitação a preços acessíveis.

US$ 150 bilhões

A congressista Maxine também trouxe números superlativos. Ela estima que sejam necessários US$ 150 bilhões para a construção de casas e para tirar todo mundo das ruas, oferecendo condições dignas de se viver. “Precisaremos trabalhar muito duro contra a discriminação também”, acrescentou, referindo-se ao fato de que a maior parte a população sem-teto é composta por pessoas negras.

Ela demonstrou, mais uma vez, sua indignação com a maneira como o problema não é tratado com prioridade. Recentemente, Maxine soube do projeto de construção de uma estrada para conectar uma cidade a outra na grande região metropolitana de Los Angeles. O tamanho é de pouco mais de 2,7 km. O custo? US$ 2 bilhões. “Isso é absurdo! Como podem falar em gastar US$ 2 bilhões para construir uma rua, enquanto não se gasta esse dinheiro com as pessoas que vão morar na rua?

Tratamento humano

A experiência de Troy mostrou que é necessário incorporar um conceito essencial para o enfrentamento dessa crise. Como disse, ele “começou sua carreira” nas ruas. Troy foi homeless durante sete anos, passando por fases como o vício em bebidas alcoólicas e drogas. Ele sabe, portanto, como se sente uma pessoa que ficou sem ter para onde ir.

Não vamos resolver o problema se não os enxergamos como humanos. Não podemos ignorar essas pessoas, que se tornam invisíveis para a sociedade. Temos de lidar com os homeless com compaixão. Temos de ouvi-los, perguntar o que querem”, orientou Troy.

Ele salientou que, muitas vezes, as soluções podem ser encontradas com a própria comunidade. Troy comentou que as pessoas em situação de rua querem melhorar sua situação, querem crescer, ser alguém. Por isso, um meio de iniciar essa jornada com a pessoa é dizer: “Eu vejo você”.

A invisibilidade da população sem-teto pode ser compreendida de duas formas. Uma é aquela que as pessoas fingem não ver. Optam por desviar os olhos de alguém que montou uma barraca na rua ou se abriga usando restos de papelão.

Outra situação é uma que deixa Troy revoltado: é a “limpeza” das ruas para retirar as pessoas quando vai acontecer um evento importante. Como ocorreu com Austin, pouco antes de receber o SXSW 2024. “Isso é uma vergonha. Esta nação está doente”, desabafou. Durante o período do festival, os delegados vão andar pelos quarteirões, pegar Scooters, chamar Ubers, ir a shows. Depois, todos vão embora e os homeless, que ficaram escondidos, vão voltar para as ruas. “Isso me parte o coração”, emendou.

Nós precisamos parar com isso. Proponho que a gente pare de ‘limpar’ as ruas quando tiver Olimpíada, quando tiver um grande evento. Parem de remover as pessoas. Estamos lidando com o problema só na superficie. E temos de encarar a realidade. Precisamos não de medidas temporárias, e sim de permanentes. E não iremos buscar as soluções permanentes se continuarmos a fazer isso. Estou cansado. Nós temos de fazer coisa melhor”, afirmou, arrancando aplausos da plateia.

A cobertura do SXSW 2024 pelo Clubeonline é um oferecimento exclusivo da Corazon Filmes (@corazonfilmes). 

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