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Um Brasileiro em Tóquio

Generosidade gera generosidade (Erick Rosa)

19.11.19

Generosidade gera generosidade.

Ou, uma garrafa de vinho, um guarda-chuva, cento e cinquenta dólares e uma carteira.

"Como trinta e tal milhões de pessoas cabem nessa cidade, Erick? Peloamordedeus!" Assim, tudo junto, sem espaços. Assustada com uma massa de gente que formigava por Shi-buya, minha irmã (Manuella) olhou ao redor — como numa propaganda daquelas do iPhone que mostra uma foto panorâmica sendo tirada — e soltou essa pergunta.

Eu tenho uma teoria. Meio simplória. Mas uma ideia: generosidade. O povo japonês tem a tal da generosidade inserida no DNA. E não é uma generosidade romântica e exteriorizada. Muitas vezes é sutil, simples, quase invisível. Mas sempre está lá. Está no passo, no ritmo ao entrar e sair do trem. Está na escada rolante. No espaço dividido com precisão. Numa cidade sem lixo mesmo sem ter lixeira nas ruas. Está no inglês esforçado. Nos gestos. Na educação e respeito (com os mais velhos e os muito novos). Generosidade é um negócio que permeia a cidade, o país. E contagia, ou já contagiou quem aqui vive - e quem aqui nasceu. E quando você nota isso, ou quando você enxerga essa matrix do bem, dá um susto bom.

Uma garrafa de vinho. Esse foi um dos primeiros sinais mais tangíveis que vi. Restaurante um pouco mais chique, vista para a cidade. Peço uma taça para mim e uma para um amigo. Estamos numa espécie de balcão - dividindo o espaço com mais um casal - enquanto assistimos o chef picotar uma carne em câmera lenta sobre a chapa. A comida chega. Conversa vem, vai, vem, vai - e assim segue. Mais uma taça para os dois. Até que a conversa ultrapassa o vinho e continuamos sem o vinho. Um, dois, três minutos e uma garrafa escorrega pelo balcão na nossa direção. Ok, três quartos de uma garrafa. "A conversa de vocês parece muito divertida - nada mais justo do que mais vinho para fazer companhia para ela." O casal ao lado havia pedido champagne e vinho. Ficaram com a garrafa de champagne, mas, ao notarem que estávamos com a taça vazia e a conversa ainda cheia, nos presentearam com o vinho. Simples, sem fogos de artifício. Um sorriso, um singelo agradecimento e pronto - eles voltaram para o jantar romântico e nós para a nossa conversa. Agora com um generoso combustível para acompanhar.

Um guarda-chuva. Quando chove em Tóquio, chove. Mas chove chuva do Projac para cena dramática da novela das 8. Aquela chuva de descolorir o piso - muitas vezes com vento contrário, não importa para que lado você anda. Bom, certo dia estou em Shibuya e a chuva começa. É como num passe de mágica - uma só gota e boom, todos os guarda-chuvas abrem ao mesmo tempo. A cidade fica coberta com uma só camada multicolor de guarda-chuvas. Nesse dia eu estava vestido como um carioca perdido no Alaska. Bermuda, Havaianas e uma camisa de botão para equilibrar o todo. Na hora da chuva, corri para debaixo de uma marquise. E por lá fiquei alguns minutos pensando o que fazer e como escapar daquele dilúvio. Foi quando vi crescer na minha direção um casal. Dois japoneses, cada um com seu guarda-chuva. Quase sem frear, o homem me estendeu o guarda-chuva dele e me deu de presente - se aproximou da mulher e seguiram juntos - dividindo o guarda-chuva dela. Eu gritava "Arigatô! Arigatô!" Um leve balançar de cabeça dele, meu e dela. E a vida seguiu.

Cento e cinquenta dólares. Desorganizado e quase sempre atrasado. Uma excelente receita que uso com frequência ao viajar. Vôo internacional. Passaporte, carteira, computador, mala de mão, revista, celular, carregador de celular, passagem, qual é o portão, opa olha ali uma loja de presentes. Parei, comprei um presente e segui bem atrasado para o embarque. Caio na cadeira, fechos os olhos e acordo minutos antes do avião pousar. Procuro o passaporte para rabiscar o cartão de desembarque, ok. Celular, ok. Carteira, nada ok. Não consigo encontrar. Pânico. Detalhe importante: minha carteira tem um clip de metal que agarra as notas de dinheiro por fora. De um lado tem esse clip, do outro, os cartões. Tudo exposto. Quem encontra não precisa sequer abrir para ver o que tem. Ela mostra sem precisar pedir. E neste dia, lá estavam algumas boas notas. O avião pousa. Mas antes, relato para a aeromoça que, provavelmente, ao parar para comprar um presente horas antes, havia perdido a carteira ainda no Japão. Ela sorri, anota meu nome, hotel onde estaria hospedado e meu telefone. Desembarco ainda suando frio e sem um único tostão. Cinco da manhã. O aeroporto estava vazio. Fico zanzando procurando algo (não sei o que) que possa me levar para a cidade de graça. Desisto e sento numa cadeira ao lado de um balcão de informações. E foi aí que mais uma vez a tal generosidade bateu. Nesse caso, bateu no meu ombro. O comandante de bordo do avião havia sido informado pela aeromoça sobre mim. Ele se apresentou, perguntou se eu tinha como ir para a cidade. Eu disse que não. Ele então abriu a sua própria carteira e me deu três notas de cinquenta dólares. Depois me deu um cartão pessoal e disse: "Sem pressa. Quando você puder, coloque o dinheiro num envelope e mande para a minha casa." Apertou a minha mão, me desejou um bom dia e seguiu. Fui atrás e apertei a mão dele como se o abraçasse.

Uma carteira. No dia seguinte, a carteira. Com todas as notas. Todos os cartões. A mesma que havia passado a noite no chão de um dos aeroportos mais movimentados do mundo, amanheceu na recepção do meu hotel. Embalada em plástico bolha e dentro de uma caixa com uma faixa "Urgente".

"Generosidade, Manuella!"

Foi a minha resposta para a minha irmã.

Erick Rosa, chief creative officer da Publicis One, em Tóquio

Leia coluna anterior de Rosa, aqui.

 

Um Brasileiro em Tóquio

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