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Um Brasileiro em Tóquio

Neil Young e um negroni (Erick Rosa)

02.09.20

Neil Young, Heart of Gold, um negroni e os mensageiros do apocalipse.

A cena a seguir se passou nos primeiros dias de março aqui em Tóquio.
Para ser mais preciso, sexta-feira, 6 de março de 2020.
Naquela sexta, a pandemia estava prestes a ser chamada como tal.
Mas ainda era uma sexta (quase) como todas as outras.

Saio de uma reunião, pouso um dos pés fora do prédio da agência e encontro uma cidade diferente. As ruas não estavam vazias. Mas também não estavam cheias.
Com aquele asfalto pintado com a cor que só existe aqui:
um pós-chuva misturado com neon.

Detalhe: éramos três saindo de uma (longa) reunião.
E, minutos antes, havíamos nos despedido.
Entre o elevador e a rua — até aquele momento -- apenas silêncio.
Mas, assim que nos deparamos com a cidade daquele jeito, antes de cada um seguir o seu caminho para casa, sem falar nada, voltamos.

Um, dois passos para trás, nos entreolhamos — e logo chegamos a decisão unânime que deveríamos buscar um lugar, um canto. Um bar para se despedir daquilo que até então era o nosso normal. Tinha cheiro de fim no ar. Uma nostalgia, uma melancolia antecipada.

Indecisão, indecisão e logo a Luciana (Cani, ECD da Saatchi&Saatchi Tóquio) quebra o silêncio: "Tem um bar que eu sempre quis ir. Fica perto de casa. No subsolo do subsolo de um prédio. Tem um letreiro meio falho na porta. Um nome estranho. Mas eu li em algum lugar sobre ele. Parece que é interessante."

Observação: a Luciana poderia fazer um guia só com lugares incríveis que ela descobre por acidente. Subsolo do subsolo é sempre um bom indicador aqui em Tóquio.
Nome estranho também.
Letreiro meio falho, idem.

Ziguezagueamos pelas ruas com uma breve parada numa loja de conveniência -- pescamos uma cerveja para tomar pelo caminho -- e logo chegamos ao bar. Ou melhor, chegamos ao prédio. Fuça aqui, fuça ali e encontramos o tal bar. Crimjon é o nome do lugar.

Entramos timidamente pela pequena porta e acenamos para a pessoa atrás do balcão.
Ele levou um susto. A expressão dele era uma mistura de "Como esses três vieram parar aqui?" com "Ainda existe um mundo lá fora?"
Logo ele cedeu, sorriu e entramos.

E foi aí, ao entrar, sentar e olhar ao redor, que chegamos à conclusão (sem dizer nada) que estávamos no único lugar que deveríamos estar.

Explico: tudo no Crimjon remete à década de 90.
É menos viagem no tempo e muito mais como se ele, o dono do bar, estivesse preso lá embaixo desde 1990 e tal.

A decoração, pôsteres que anunciam shows de bandas que atingiram o auge naquela década, os bonecos de heróis do passado. É uma sensação muito clara de que todo mundo que entra pela porta daquele bar é tratado como um mensageiro do apocalipse.
Éramos três. Três mensageiros do apocalipse buscando um esconderijo.

Você olha ao redor e chega a uma rápida conclusão que o presente, 2020 -- é um futuro que ele escolheu não fazer parte. Como se em algum belo dia na década de 90, ele tomou a decisão de ficar lá embaixo -- e de lá nunca mais saiu. E por lá ficou até hoje com um sorriso sem tamanho no rosto. E feliz com a decisão, nunca mais subiu para a rua, para a superfície.
E para sempre viveu num espaço de tempo só dele.
Protegido, alegre, cercado daquilo que soma apenas felicidade na vida dele.

Pode parecer exagero.
Prometo que não é.

Talvez o que melhor prova a minha teoria de que ele está lá desde então é a parede atrás dele. Uma parede inteira, do teto ao chão, coberta com CDs (o finado compact disk).
É como se ele ainda não soubesse que o CD deixou de ser o padrão, o streaming foi inventado e o vinil voltou com tudo.
São milhares de CDs organizados em ordem alfabética. Eu nunca farei justiça com a dimensão da coleção de CDs que ele tem. Pausa para acrescentar mais uma função para ele. Além de dono e bartender, é dos melhores DJs que eu já vi. Ou se não é o melhor, o cenário e o fato de estarmos vivendo essa vida suspensa, faz dele um sujeito único e especial.

Naquela noite não entrou mais ninguém naquele bar. Éramos quatro no total.
O bartender e nós três.
Aquela foi a última sexta-feira.
A última antes de tudo.
Para todo o sempre, as sextas-feiras seriam e serão diferentes.
Todas as sextas desde então fazem parte de um universo em que existiu e existe a pandemia.

Para o mundo inteiro, menos para ele é claro.
Sim, gosto muito de imaginar que ele, o dono-bartender-DJ do Bar Crimjon, não sabe o que se passa aqui fora. Não tem ideia.

Vive num estado permanente de euforia. Com The Cure, Tom Petty, Queen, Prince, Radiohead -- entre tantos outros. Vive em um tempo antes de tanta coisa que mudou tanta coisa.

O Crimjon é um refúgio. Não é uma viagem no tempo. Não.
É um lance de escadas, um portal que te leva para um espaço preservado em pleno 2020, como se ainda fosse e respirasse 1990 e alguma coisa.

No Crimjon, você é atendido por um gentil senhor que usa um chapéu meio Jamiroquai.
E, dependendo do CD escolhido, rege como maestro de uma orquestra visível só para ele, as músicas que ecoam por aquele minúsculo bar. E, de longe, o mais importante -- sorri com uma frequência muito maior do que o mundo atual permite.

"Neil Young, Heart of Gold? Pode tocar essa música?"
Pausa.
"E um Negroni também, por favor."
Foi o último pedido que eu fiz antes de sair de 1990 e tal e pisar novamente em 2020.

Na última sexta-feira de todos os tempos.

Cinco dias depois, no dia 11 de março, uma quarta-feira, a Organização Mundial da Saúde oficializou a pandemia.

Qualquer dia desses eu volto.
"Neil Young e um negroni."
O calendário insiste em dizer que já estamos em setembro.
Esse ano pede (exige) mais uma rodada.

Erick Rosa, chief creative officer do Publicis Group, em Tóquio

Leia coluna anterior deste mesmo autor aqui.

Um Brasileiro em Tóquio

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