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Um brasileiro em Singapura

Três anos de Singapura (por Erick Rosa)

08.05.17

Três anos de Singapura, a marquinha do nariz da Nina e o tempo.

A Nina -- minha filha -- tem uma marquinha no nariz. Pequena. (Quase) invisível. Eu sei que está lá, a mãe dela também. Os irmãos já esqueceram ou não sabem. A marquinha fica naquela mini ponte entre as duas narinas. E tem um significado enorme. Ela e o (Benja)Mim --seu irmão gêmeo -- nasceram prematuros, bem (mas bem) pequeninos.

E por quase uma semana ficaram com um respirador preso no nariz para ajudar com a respiração. A marquinha é resultado da pressão do aparelho que deu forças para ela ganhar peso nos primeiros dias de vida. Sempre que lembro, entorto um pouco a cabeça como se fosse espiar uma meleca, mas é só para ver a marquinha.

A marquinha do nariz da Nina é das coisas mais lindas que existem.

Esses dias passamos uma tarde inteira vendo um álbum de fotos das crianças. Dos primeiros dias em Lisboa, passando por São Paulo até os dias de hoje em Singapura. Me lembrei da marquinha e que também, esses dias, completamos três anos desse lado do mundo. A marquinha da Nina é um espaço de tempo por si só. A marquinha é tempo de vida. Bem vivido.

Sobre o tempo. Singapura tem uma relação curiosa com o tempo. Os dois, o que o relógio e o calendário marcam e o que você espia fora da janela. Sobre o segundo, como já disse em outra ocasião, é o mesmo sempre. Varia entre 29 graus e 34, para sempre. Isso tem um efeito interessante, você não nota o (primeiro) tempo passar. Ou nota e não nota. É claro que as coisas correm. Mas sem qualquer pista que mudamos de estação, janeiro e julho são idênticos em qualquer post no Instagram. Então, três anos correm, voam.

O crescimento das crianças é o melhor calendário. O português falho deles também. Hoje mesmo, o Mim, na maior naturalidade cometeu mais um acidente gravíssimo ao saudar um amigo meu nascido em Portugal. "Eu sabe você!", disse o Mim ao ver esse amigo. Ele traduziu do empolgado "I know you!". E, ciente do que tinha feito, enquanto apertava a mão do conhecido disse: "Eu sei, falei errado, mas tá tudo certo." O Francisco, o menor, continua firme e forte agarrado ao português quase correto. Seguindo mais ou menos o que relatei em um texto quando comemorei dois anos aqui, vou escrever nos próximos parágrafos um pouco sobre a cidade-país nesse último ano que transformou tudo em três.

A cidade está sempre em obras. Mas não no mesmo lugar. Tem sempre um lugar da cidade em construção, reforma, mudança, melhora. Tenho um cliente que visito todas as semanas. E acho, sem qualquer exagero para efeito deste parágrafo que, quase num timelapse, vi subir uma estrutura dessas de filme de ficção científica—no espaço de umas 18 reuniões. Coisa de quatro meses e lá estava, um negócio de três prédios espelhados. Em outro lugar, perto de casa, tapumes subiram ao redor de um corredor de restaurantes, e em três semanas, tudo novo. Uns quatro episódios daquele reality show em que o Gordon Ramsay reforma tudo. Tudo ao mesmo tempo. Sem dramas. Toda obra tem hora contada para começar e acabar. Detalhe importante, sempre com aquele aviso do lado de fora: "Business as usual." Nada pára. Uma estação do metrô pipocou ao lado de casa nesses três anos. Tapume, tapume, tapume, "Sorry for the incovenience." E lá está mais uma estação do metrô pronta.

Um parênteses aqui na sequência lógica deste texto. Mas sempre quis falar sobre o nome de um lugar que tenho tentado encaixar em um texto desses. Toof Doctor. Das coisas mais simples e simpáticas que existem. Toof é "Tooth", dente. Toof Doctor é o nome de uma rede de dentistas aqui. Não sei você, mas para mim, do inglês, o maior drama sempre foi essa coisa do “th”, “Tooth”, “Things”, “Thought”. Aquele negócio da língua pressionando os dentes da frente para evitar cair na armadilha de usar o “F” no lugar do “TH”: “fings” no lugar de “things”. Por isso, ao invés de “Tooth Doctor”, “Toof”. Toof Doctor para mim explica Singapura de um jeitão meio breve, mas explica. Tem a formalidade do “Doctor” no nome -- mas tem também o “Toof”-- que é a maneira de dizer: “Erick, também achamos complicadíssimo o som do 'th', estamos juntos.Toof é o pedacinho informal, simples -- quando se precisa de simplicidade.

Sobre a distância. Meus pais já visitaram, meus irmãos andam meio em falta. Mas taí uma coisa que Singapura, com tudo que tem para oferecer e de curioso, não consegue: convencer pessoas a embarcarem nessa viagem ao redor do mundo. Então, assim como eu disse no primeiro destes textos, uma hora você entende e aceita que está num mundo quase paralelo, nem melhor, nem pior, paralelo -- e ok.

A janela de conversa com o Brasil que lá no primeiro ano era um pouco mais frequente, hoje é um surto de emojis ao acordar e um mais breve antes de dormir.

Bali é logo ali.” Tem um espanhol muito gente boa da agência, o Gonzalo -- que sempre arquiteta o ano dele e as férias -- com algumas idas à Bali na sexta após o almoço com retorno marcado para a segunda. Não sei qual é a equação certa que ele tem com o RH, mas o álbum de fotos que ele posta desses fins de semana na Indonésia é a melhor propaganda de se viver nessa região. Então, pela segunda vez fui à Bali com a família. E assim, Bali deixou de ser uma daquelas viagens que se faz apenas uma vez na vida. Afinal, o Gonzalo tinha razão, “Bali é logo ali.” E apesar de soar repetitivo de algum outro texto destes, tudo aqui no sudeste asiático “é logo ali.” Em qualquer conversa que tenho com alguém sobre uma possível mudança para essas bandas -- esse é um dos melhores motivos para riscar o mapa-mundi nessa direção.

Voltando para as crianças. Meus filhos mudaram de escola. Estão se alfabetizando agora. E num evento na escola para as famílias dos alunos, mais uma vez vi como Singapura é colorida. Mistura de línguas, países de origem, sabores, aromas e cores. Era um desses sábados na escola em que os pais se oferecem para cozinhar em quiosques típicos de cada país. Esse “tudo misturado” também resume muito esses três anos.

Sobre os amigos fora do trabalho. No meu caso, na grande maioria das vezes -- estes são os pais dos amigos dos meus filhos. E quase sempre, num piscar de olhos, aquele casal que você conheceu durante a festa de aniversário no pula-pula, já está de mudança. Singapura tem esse lado transitório para muita gente. As crianças sofrem mais. A melhor amiga da Nina (filha de um pai italiano e mãe espanhola) está hoje na Austrália. O melhor amigo do Mim (filho de uma mãe singapurense e de um pai indiano), na China.

Carro, ou a completa falta de intimidade com ele. Depois de três anos, esqueci o que é ter qualquer relação com um automóvel. A ilha não comporta muitos carros e cobra caro para se ter um. E com o metrô, ônibus, ubers e similares, você esquece completamente o que é ter qualquer relação com um automóvel. O que é bom, mas também ruim quando você precisa dirigir. Numa viagem recente com a família onde era necessário dirigir, ficamos quase ilhados pois eu já não tinha mais uma carteira válida.

TV. Não temos TV desde que chegamos. A internet é tão violentamente rápida, que fez mais sentido consumir uma combinação de Netflix, Amazon Prime, Hulu, HBO GO e YouTube. E crescer sem televisão teve um efeito curioso nas crianças. Numa viagem recente, no quarto do hotel, eles não entendiam a ideia de ter que esperar para assistir um programa na TV do quarto. "Como assim? Esse desenho só vai passar enquanto estivermos na praia?! COMO ASSIM?! Podemos ver depois? Como não? O que está acontecendo?"

Em relação ao trabalho. Uma coisa que noto claramente depois de três anos, é que existe uma menor frequência de criativos mudando de agências. Muito menor. A criação lá da agência é praticamente a mesma desde que cheguei.

Ideias. As boas são boas em qualquer lugar do mundo. Mas aqui, muitas vezes tenho que me agarrar em alguém que me sirva de bússola para oferecer contexto da região para entender que não vamos perder a conta apresentando tal ideia.

Ano passado fui jurado num prêmio regional, o Adfest. Metade dos filmes vencedores eram japoneses. Metade do tempo no júri foi escutando o jurado do Japão dando um wikipedia para entendermos que raios estava acontecendo na tela. O Grand Prix foi do Japão. GooglaFirefly man + Ocedel + Adfest”. Como diria um amigo, “É doidjo.” Muito doidjo.

Ainda sobre o trabalho. Muitos criativos fazem antes mesmo de falar. Em outras palavras, ao invés de contarem que vão criar uma embalagem com gosto de maionese, eles fazem a tal embalagem e te convidam para comê-la no almoço. Aqui vejo muito isso, criativo recebendo uma caixa de papelão que mal entra pela porta. E segundos depois descubro que é o protótipo de uma coisa que o criativo achou melhor mostrar do que apenas contar agarrado a uma folha de papel. E contagia.

A distância, o fuso, tudo é enorme. E três anos, nos dias de hoje, com mil canais de conteúdo, as redes sociais, tudo conectado 24 horas, é muito mais do que três anos, dez anos atrás. Então, como a Laís é sempre generosa com este espaço, meus irmãos ainda não tomaram vergonha na cara para fazer uma visita e ainda recebo alguns e-mails curiosos -- achei três anos um bom motivo para escrever sobre mais este pedaço de tempo do lado de cá.

Pai, você acha que quando eu crescer, com o tempo, a marquinha do meu nariz vai desaparecer de vez?

Tomara que não, Nina.

Erick Rosa, diretor executivo de criação da MullenLowe Singapura

Leia a coluna anterior de Rosa, aqui.

Um brasileiro em Singapura

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