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Mulheres na publicidade

Onde estão as grandes mudanças?

12.03.19

Na esteira das campanhas e manifestações deflagradas pelo Dia Internacional da Mulher, o Clubeonline procurou líderes de movimentos ou entidades cujos trabalhos têm ligação com nosso mercado, em especial com as agências. Muitas ações e projetos surgiram nos últimos três anos, como o Free The Bid (que visa ampliar a participação de mulheres na direção de cena, entre outras metas), em 2016, e a Aliança Sem Estereótipo (que discute a representação da mulher nas campanhas), em 2017, lançada em Cannes pela ONU Mulheres - no Brasil, foi  anunciada neste mês, com apoio da Associação Brasileira dos Anunciantes (ABA), Unilever e Heads Propaganda.

Durante este período, as agências trataram de anunciar mais mulheres em suas equipes, novos estudos foram deflagrados e núcleos criados. Mas o mercado está mesmo mudando, na real? Ou as mudanças que acontecem são ainda superficiais, sem refletir transformações estruturais?

Todos os líderes de agências estão preocupados com a questão, mas muitos têm ideias que não geram mudanças. Às vezes, nem percebem isso”, afirma Laura Florence, diretora executiva de criação na Havas Health & You e cofundadora do projeto More Grls, plataforma lançada em abril do ano passado, junto com Camila Moletta, para dar mais visibilidade a mulheres na publicidade, gerando oportunidades para que elas encontrem novas posições de trabalho. Já são mais de quatro mil profissionais de publicidade, design e conteúdo cadastradas no site.

Laura conta que seu ambiente de trabalho é um cenário bem distinto se comparado ao de várias outras profissionais do mercado. “Tenho uma autonomia diferente em comparação a outros lugares onde trabalhei”, explica. E ela está para abrir duas vagas, focadas prioritariamente na diversidade. Para isso, procura convencer a empresa de que é necessário contratar um serviço especializado nesses perfis para ter a busca facilitada.

Contratação é um ponto que mostra como estamos distantes de um cenário justo para as mulheres. Na maioria das vezes, os líderes decidem que o esforço deles é oferecer um curso de capacitação, acreditando que as mulheres só não sobem de cargo porque lhes falta capacitação. Mas há muitas profissionais trabalhando que não são promovidas. A verdade é que o ambiente só vai mudar [para algo mais igualitário] quando houver representação adequada dessas profissionais”, diz Laura. Essa representação significa 50% do time, já que as brasileiras são 51,5% da população, conforme informa o IBGE.

Mas aumentou a presença de mulheres?

Com tantos movimentos, manifestos e anúncios de contratações e promoções de mulheres, era de se esperar que tivesse ocorrido um salto nas equipes criativas. Contudo, Laura observa que não é bem assim. Mulheres na criação representam 26%, como apontou levantamento feito pelo Meio & Mensagem em 2018, consultando as 30 maiores agências do mercado. Em 2015, esse índice era de 20%. Houve, portanto, uma melhora de seis pontos percentuais em três anos. A meta do More Grls é estimular que o percentual seja de 50% até o final de 2020. As agências que participarem dessa missão receberão um selo dado pelo projeto. É, de fato, um caminho desafiador. Talvez isso explique porque a missão até o momento só conte com duas agências do mercado: Fbiz e Wunderman. Aceitaram também o desafio algumas agências de menor porte e digitais.

Um dos pontos para elevar a participação feminina na criação é entender que o mindset precisa mudar. Um comentário comum dos líderes criativos é que eles querem diretoras de criação premiadas, mas “só existem dez” no mercado, olhando basicamente para os nomes já "consagrados". Que, por sua vez, têm salários altos (nem sempre os dirigentes estão dispostos a bancá-los).

Não dá para se limitar a indicações dos amigos, que vão recomendar sempre os mesmos nomes, e a mulheres já premiadas. É preciso abrir o olhar. É preciso procurar por perfis de liderança. Nossa plataforma está repleta de gente”, diz Laura. Não se nega que a buscar dá trabalho. Mas é preciso olhar as profissionais, conferir os portfólios. Existe um serviço pago do More Grls, uma consultoria feita pela plataforma, que facilita essa procura. De graça, é possível fazer a pesquisa entre as profissionais cadastradas, usando as ferramentas que selecionam melhor o perfil.

E as chances de crescer, são iguais?

Como se viu, a participação cresce, porém em ritmo muito lento. Por outro lado, estaria se criando uma espécie de "preenchimento de cota", sem que se ofereçam condições para que a mulher possa se desenvolver no trabalho, como se desenvolveria um homem? Abrir mais espaço para as profissionais é importante, não há dúvida. No entanto, é fundamental perguntar-se o que está em mente: igualdade ou equidade? Esses conceitos deverão fazer parte da campanha do More Grls pelo primeiro ano de atuação. Laura conta que entre iniciar carreira numa agência e chegar a diretora de criação se trava uma dura jornada e por isso há uma alta taxa de evasão das criativas: 72%. Por que? “Porque temos de trabalhar o dobro, porque ainda tenho de cuidar da casa e do filho. Porque ganho menos do que os homens. Porque não vejo outras mulheres como diretoras. Porque talvez eu não consiga chegar a ser diretora. Há muita frustração. Uma diretora de arte, uma designer pode desistir e resolver fazer outra coisa na vida”, exemplifica.

Para entender a diferença entre igualdade e equidade sem revelar como será a campanha, que entra no ar em abril, Laura remete à imagem que circula pela internet dos três torcedores que acompanham um jogo por trás de uma cerca. Os três têm tamanhos diferentes, porém todos sobem em três caixas de madeira iguais para enxergar melhor o que se passa em campo. Esse quadro representa a igualdade. Entretanto, o torcedor menor é muito mais baixo que o maior. E, apesar de ter conseguido uma caixa, isso não permite que veja. Para dar condições justas a todos, o maior fica sem a caixa - o que não o impede de acompanhar a partida - e esta vai para o menor, que a partir de então consegue ver o jogo.

Às vezes, acham que as mulheres têm de trabalhar com contas femininas. Não há problema em trabalhar com essas contas porque, em geral, são internacionais e grandes. Mas o problema é ficar nichada”, comenta Laura. Outro problema é que em agências se trabalha muito  (ainda mais no caso dessas contas femininas internacionais). As agências têm uma cultura que determina que é sempre preciso "fazer sempre", ficar até tarde. E existe o outro lado da vida, que é o familiar. Homens e mulheres têm de cuidar dos filhos, só que é sabido que boa parte dessa tarefa está com elas. Se a profissional é mãe de crianças pequenas, então, é necessário compreender que ter horário para chegar e para sair é essencial para ela.

E, pasmem, uma pesquisa da plataforma Hysteria, divulgada na sexta-feira 8 (leia aqui) e realizada só com mulheres, mostrou que 78% delas acreditam que as pessoas ainda veem uma mãe como uma profissional menos comprometida com o trabalho. E 62% delas relatam se sentir diminuídas no emprego por serem mulheres.

E o assédio?

Em novembro de 2017, o Grupo de Planejamento (GP) apresentou uma pesquisa sobre assédio moral e sexual que revelou que 90% das profissionais do mercado, em São Paulo, já sofreram esse tipo de violência no trabalho - o índice de homens que passou por isso é de 76%. Em relação ao assédio moral, 89% das entrevistadas disseram que o problema ocorre constantemente no trabalho. Sobre o assédio sexual, 67% das mulheres afirmaram que ele é frequente (leia mais sobre o estudo aqui). A partir de então, o GP passou a levar essa pesquisa para diversas agências e entidades - também foi criado um vídeo com alguns dos relatos que serviram de base para a pesquisa; veja mais abaixo). Mas quantas empresas fizeram revisões em suas posturas e implantaram medidas concretas a partir dessas revelações?

A presidente do GP, Renata d’Avila, chief strategy officer da Fbiz, conta que em novembro passado fechou-se o ciclo deste trabalho, com os conselheiros Ken Fujioka e Ana Cortat tendo feito mais de 65 apresentações em agências, associações e parceiros. “Desde o começo, entendemos que o papel do GP era entender a situação e provocar a evolução da discussão. Então, não temos um acompanhamento formal das agências e suas ações. Sabemos que algumas evoluíram da discussão para ações mais concretas, como cartilhas, comitês anti-assédio, mais divulgação das linhas de denúncia e construção de políticas mais eficientes no combate, mas não temos um número”.

Na Fbiz, sobre a qual Renata responde, foram criados um comitê, uma cartilha anti-assédio e políticas sobre o tema. A diretoria foi treinada sobre o assunto e foram desenvolvidos canais de denúncia, além de ter sido implementada uma pesquisa sobre igualdade de gênero e montado um grupo focado em diversidade.

Quando se faz um projeto como esse, a expectativa é alta e o desejo de mudança rápida fica latente. Então, por mais que tenhamos avançado, acreditamos que o resultado sempre poderia ter sido melhor”, afirma Renata. Ela considera que tirar o assunto das sombras e colocá-lo de frente foi fundamental para que ele não fosse ignorado ou para que as agências não fingissem que isso não é um problema. Também ajudou vítimas a se sentirem mais fortalecidas para falar e buscar ajuda. Foi um primeiro passo. “Infelizmente, não conseguimos construir uma articulação forte entre todas as entidades para irmos além da discussão. Seria importante as agências que estão tomando medidas concretas mostrarem isso e criarem uma onda mais positiva de mudança”. Não há previsão de uma nova edição do estudo.

Mas quais são os principais obstáculos para termos um cenário mais transformador, apesar de falarmos tanto sobre assédio moral e sexual? “Temos um problema estrutural de uma cultura assediadora. Infelizmente, mudanças culturais não são simples, nem rápidas. Admitir o problema é um importante primeiro passo, mas, mais do que isso, é preciso assumir os erros e construir novos caminhos”, explica Renata. Como ela observa, muitas coisas foram naturalizadas no mercado. “Entender isso já é um passo para a mudança”. E lembra que informação é a base da transformação. “A própria pesquisa mostrou isso, já que as agências que falam, ou têm informação sobre o assunto, têm menos casos”, diz.

O que fazer para termos mudanças estruturais?

Encampar uma causa ou ser ativista não é uma tarefa fácil. Na verdade, é mais uma tarefa dentre todas as demais que continuam correndo no dia a dia. E é uma responsabilidade enorme - às vezes, com o sério risco de “levar pedradas” nas redes sociais. Porque há grupos de distintas naturezas se manifestando nesse campo. É compreensível, portanto, que algumas líderes do mercado de comunicação fiquem indecisas sobre ser porta-voz ou embarcar em um projeto feminista. agenda já está muito carregada. Mas seria essencial ter mais aliadas e geradoras de inspiração. As mulheres que chegaram ao topo são elementos importantes para a mudança. Elas podem ajudar a puxar outras para cima. “Tem hora que a gente sente um gostinho de exclusividade porque pertence a um grupo restrito. Foi um esforço muito grande para chegarmos onde chegamos, mas é preciso mudar isso. Não dá para ser única. Temos desafios difíceis. O mercado tem uma correção histórica a cumprir. E precisamos de mudanças drásticas”, destaca Laura, que confessa ter “desconstruído” sua trajetória para compreender que os tempos são outros e demandam uma mentalidade diferente para projeção de novas lideranças.

A meta de 50% de mulheres na criação, estabelecida pelo More Grls, requer muito esforço por parte do mercado. Isso é reconhecido. “A Nasa já tem 50% de mulheres em sua equipe. Hoje, está mais fácil mandar uma mulher para a Lua do que termos mais líderes de criação”, compara Laura. Ela conversa com muitos criativos e sabe que diversos querem contribuir, mas que não se dão conta do que isso significa, realmente. “Às vezes vejo uma foto. Ela acompanha o anúncio de uma nova contratação: uma mulher na equipe. Mas aí aparecem vários homens na imagem e a mulher está no canto”, completa.

Para impulsionar o processo de valorização das profissionais, com mais representatividade e equidade no mercado, a plataforma estabeleceu metas que envolvem outros players da indústria. Entre os anunciantes, a proposta é que as empresas investiguem suas agências e que exijam a meta de 50% de criativas até 2020. Para a mídia especializada impressa, que ao menos uma criativa seja entrevistada por edição. Recrutadores são orientados a incluir o mesmo número de criativas e criativos nos processos seletivos. E aos organizadores de festivais e prêmios, que metade do júri seja composto por mulheres.

Renata d’Avila, por sua vez, ressalta que a luta pela igualdade de gênero é uma realidade e que "estamos todos os dias buscando mais espaço". “O que me deixa feliz é estarmos mais unidas e focadas, construindo exemplos e cada vez com menos medo ou vergonha de falar e exigir”. Ela retoma o argumento de que o quadro exige uma mudança de cultura (“da qual o assédio é decorrência, inclusive”), que toma tempo e não é simples. Por isso, sustenta que feminismo não é modinha: é um movimento constante de transformação. “Temos todas que ser feministas, falar, cobrar, construir pontes, discutir. Não é 'sobre nós e contra eles', é sobre juntos mudar a realidade para algo muito mais interessante. Tem muito a ser feito e não dá para cansar ou desistir.

por Lena Castellón

Ilustrações - Camila Moletta/ More Grls

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