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O Espaço é Seu

E viva as diferenças (Filipe Cuvero)

10.10.16

Quando deixamos de dirigir e somos levados pelo desconhecido

Depois de 18 anos de profissão, a tendência é achar que já fizemos de tudo, que já sabemos tudo. Engano, é aí que nos surpreendemos. Um trabalho que parece simples pode ter a capacidade de nos ensinar que tudo ainda pode ser diferente. Aquele que seria só mais um job acaba por mostrar coisas novas – não só sobre a forma de trabalhar, mas principalmente sobre a forma de lidar com o ser humano.

A "Exposição IGUAIS by Canon" (leia aqui) foi exatamente isso. A ideia nasceu de um papo meu com o Mario D’Andrea sobre como a cultura e os novos hábitos sociais estavam mudando e influenciando a propaganda. E, principalmente, qual era o papel de uma marca nisso tudo, como ela deveria se expressar em meio a tudo isso.

A ideia parecia simples: colocaríamos frente a frente pessoas de mundos totalmente diferentes e desconhecidas entre si. E, entre elas, somente uma câmera fotográfica. Assim iríamos provar, de forma real, como uma câmera é capaz de promover a convivência entre os diferentes. Quando formatamos a ideia, pensávamos que participaríamos de apenas mais uma sessão de fotos com pessoas de verdade, como já participamos inúmeras vezes na carreira. Mas durante a escolha do casting tudo começou a se mostrar diferente. E bem mais delicado. O que estava em jogo não era a fotogenia ou beleza de cada selecionado, mas sim a história de vida de cada um. Além disso, tínhamos mais um ingrediente: em vez de escolher pessoas que combinavam – como normalmente se faz numa foto –, tínhamos de escolher pessoas que eram claramente opostas umas das outras.

Na primeira dupla, o aprendizado já foi enorme. Tínhamos que encontrar um judeu que topasse fotografar e ser fotografado por um muçulmano. Vários não aceitaram participar do casting. Finalmente encontramos um. Tudo estava acertado. Porém, no último momento, ele desistiu.

Em uma nova busca frenética, finalmente encontramos alguém que, além de aceitar, deu maravilhosas lições de vida durante seu depoimento pessoal.

Já para encontrar um muçulmano, tivemos sorte. Encontramos rapidamente a Rasha, uma síria recém-chegada ao nosso país com uma história de luta incrível. Já arranhava o português e estava muito contente em participar das fotos. E mais contente ainda em participar da vida brasileira. Seu depoimento arrancou lágrimas e sorrisos de todos.

No set, durante as fotos, descobrimos que ambos não podiam chegar muito perto fisicamente um do outro. Regras de suas religiões – tão diferentes e com um respeito tão parecido.

Não foi só no casting que aprendemos. Assim que começamos o primeiro dia de sessão de fotos, me deparei com outro tabu que, como diretor de arte, eu precisava quebrar. Desde o princípio, pedimos que as pessoas trouxessem suas próprias roupas. Não queríamos produzi-las, queríamos a verdade absoluta em cada clique.

Pois bem. Assim que Tiago Capuzzo – homossexual, andrógino, ele mesmo se define de várias formas – chegou ao camarim, mostrou o figurino escolhido. Muitas cores, brilhos, tudo muito alegre. Em vez de dizer “esse aqui”, preferi não dirigir nada: "Tiago, quero que você seja você mesmo, use o que melhor te representa."

Ele escolheu um figurino rosa, com suspensório. Eu, provavelmente, nunca teria escolhido aquela roupa. Na hora da maquiagem, ele começou a pintar a barba de rosa. Naquele momento, fiquei na dúvida. Se fosse uma sessão de fotos tradicional, pediria para não pintar a barba, mas decidi ficar quieto, na minha, e deixei ele fazer o que queria. Afinal, não era isso que desejávamos? Que cada um fosse o “diretor” da própria foto?

A sessão de fotos também foi reveladora. A do jogador de basquete de 2,05m e do jóquei de 1,54m foi divertidíssima, mas era algo até esperado. Porém, uma das sessões que mais nos surpreendeu foi a da senhora Leonor, uma pacata vovó, e de Heitor Werneck, o estilista/punk todo tatuado. Eram mundos muito diferentes. Leonor, principalmente, queria entender tudo: como as pessoas viam Heitor, por que ele fazia aquela cara de bravo a cada clique. A interação foi tão boa e espontânea que desmontou a pose punk de Heitor, que não parava de cair na risada. Essa alegria ficou estampada nas fotos.

Além de conhecer tantas histórias de vida diferentes, transformá-las em fotos foi um dos maiores desafios. Das 20 pessoas, somente duas delas tinham intimidade com um set ou com uma câmera profissional. Um dia antes fizemos um pré-light, ajeitamos quatro sets – até tripés deixamos a postos. Mas nada disso evitou dificuldades. Quando começaram as sessões, ficou claro que alguns se davam melhor na frente das lentes e outros atrás delas. Natural para quem nunca havia visto um set antes. Mas nada natural para mim. Pela primeira vez como diretor de arte, eu não podia dirigir nem dar palpite nas fotos. Eu só estava lá para garantir que tudo estivesse indo bem. Foquei em deixá-los à vontade e “ensiná-los” a lidar com aquela situação com pessoas desconhecidas.

Ao final percebi que este projeto foi um dos mais interessantes da minha carreira. Um job que tinha tudo para ser apenas mais um – mas provou que, quando você lida com pessoas reais e não com ficção, sempre pode aprender algo diferente.

E viva as diferenças.

Filipe Cuvero, diretor de criação da Dentsu

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