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O Espaço é Seu

Medusa. Fama. Autoestima do ovo (Thiago Espeche)

04.03.24

Desde os primeiros momentos nas instituições de ensino e cursos de capacitação, os futuros profissionais criativos do mercado publicitário mergulham em uma cultura de competição acirrada e busca incessante por reconhecimento individual. A construção de um portfólio impactante e a necessidade de se destacar entre os colegas tornam-se imperativos, gerando uma ansiedade constante. A consciência de que uma ideia inovadora pode impulsionar a carreira, resultando em prêmios prestigiosos, alimenta essa competição acirrada, projetando os criativos em uma trajetória vertiginosa. Contudo, é fundamental ter cautela, pois esse caminho pode se revelar uma armadilha.

Na mitologia grega, Medusa simboliza um paradoxo fascinante com seu olhar capaz de petrificar quem a encara diretamente. Esse mito encontra paralelos impressionantes no mundo contemporâneo, especialmente na incessante busca por fama e reconhecimento artístico. A fama, à semelhança de Medusa, pode ser sedutora, prometendo glória eterna e admiração ilimitada. Entretanto, seu brilho pode aprisionar, cristalizando o artista e sua obra, e inibindo a evolução e a renovação criativa.

Ao ser seduzido pelo encanto da fama e confrontá-lo diretamente, o indivíduo arrisca-se a tornar-se uma estátua de si mesmo, eternamente preso a um momento específico de sucesso. Sua arte, que antes era vibrante e dinâmica, pode estagnar, caindo na armadilha de repetir exaustivamente fórmulas antigas, que com o tempo se tornam obsoletas e perdem seu brilho original. Isso é evidenciado quando, de maneira figurativa, o artista começa a andar de lá para cá com um cocô de pomba na cabeça, simbolizando a desconexão com a evolução artística e o peso de permanecer imutável.

Hoje, entendo que toda percepção cultural é tão mutável quanto a reputação do ovo: em um momento, aclamado herói; no outro, denegrido vilão. Nós, os criativos, diretores e artistas, devemos buscar inspiração na inabalável autoestima do ovo. Desafiando críticas e transcendendo elogios, o ovo permanece intrépido, resiliente e autêntico, nunca deixando de ser o que verdadeiramente é. Um ovo!

No competitivo universo publicitário, a ascensão rápida pode parecer o caminho mais atraente, mas um crescimento horizontal, enriquecido pelo aprendizado de novas habilidades e pela construção de relações sólidas, pode ser mais sustentável a longo prazo. A tendência mundial de grandes criativos abandonarem as agências para trabalhar de forma autônoma é uma jornada e tanto, neste aspecto. Olhar a publicidade e todo o seu mercado de fora é um remédio para o criativo e para o mercado. Antes o briefing caía na sua mesa, agora, aprender a caçar o briefing é um aprendizado enorme. Depois, será vital quebrar o estereótipo do artista unidimensional. Esse estereótipo deriva do famoso “Sou de humanas. Não sou de exatas”, mas deve ser ampliado para incluir áreas como negócios, finanças, vendas, relações interpessoais e até mesmo tarefas cotidianas.

Além disso, é essencial adquirir um conhecimento profundo sobre os diversos departamentos que compõem o ecossistema. Você poderia me dizer como funciona o ciclo financeiro da agência que você trabalha? Poderia me dizer quanto o cliente para quem você cria paga de fee? Quais são todos os ingressos? Por onde entram? Quanto gastou ano passado? Quanto gasta hoje?

A criação perdeu poder quando ela se distanciou do dinheiro para focar apenas na criatividade, aí falaram pra ela que criatividade não combina com números, que um cara criativo é desorganizado por natureza, e aí lascou.

Reparem que outros departamentos da agência frequentemente possuem um entendimento apurado do universo criativo. Isso não significa que sejam capazes de comandar uma mente criativa, nem de criar uma f*cking linha, mas possuem conhecimentos valiosos, principalmente sobre a estruturação de ideias. Esse interesse pelas habilidades alheias nem sempre é recíproco por parte dos artistas, alguns dos quais podem ver isso como perda de tempo ou acreditar que tal aprendizado não contribuiria significativamente para sua corrida ao prestígio. Esses criativos caíram na armadilha.

Se desejamos retomar a relevância em nosso mercado, não podemos nos reduzir a meros fornecedores decoisas divertidas” enquanto outros lucram com nossas ideias.

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No cinema, é comum encontrar diretores que acumulam funções. São roteiristas, diretores, produtores e produtores executivos em seus próprios projetos. Este perfil polivalente é característico tanto de cineastas renomados quanto de realizadores do cinema independente. Em contraste, o setor publicitário tende a segmentar funções de maneira mais rígida, com redatores focados exclusivamente em escrita, diretores de arte concentrados em layout e diretores de cena envolvidos com produção, mas raramente ultrapassando esses limites. Esta estrutura pode restringir o potencial criativo e inovador do setor.

Imaginem se Charlie Chaplin estivesse inserido no mercado da publicidade. Por suas habilidades multifacetadas e genialidade criativa, ele não seria apenas o criativo por trás das grandes ideias, mas também o CCO, o fundador da agência, o diretor de cena, o dono da produtora, o diretor de arte, o produtor, o produtor de arte, o maestro, produtor musical, o dono da produtora de som, o produtor de elenco e o ator. Sua capacidade de desempenhar múltiplos papéis não apenas enriqueceu suas próprias criações, mas também estabeleceu um novo padrão de excelência no cinema. Chaplin, com seu domínio abrangente da arte cinematográfica, desde a atuação e direção até a composição musical e edição, é a encarnação do artista real.

Em resumo, a interação entre a Medusa mitológica e a fama contemporânea destaca a dualidade do estrelato: um presente que, se não manejado com discernimento e uma postura de aprendizado contínuo, pode se tornar uma maldição. O desafio para os artistas é manter um olhar crítico e um coração aberto, prontos para abraçar novas experiências e conhecimentos, sem se deixarem petrificar pelo brilho sedutor da fama. Para Žižek, a verdadeira liberação criativa só pode ocorrer quando nos libertamos das cadeias do reconhecimento externo e buscamos uma autenticidade que desafia o status quo. Você conhecia Žižek? É isso aí, ele conseguiu!

Thiago Espeche, diretor de cena, criativo, roteirista e fundador da Chucky Jason

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