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Um brasileiro em Singapura

Sobre morar fora. Ou, as ilhas, a churrasqueira e o Mim

10.11.15

Pai, você acha que um dia a gente pode fazer um churrasco igual ao do Brasil?”. Assim que mudamos para Singapura, o Mim (Benjamim), meu filho de cinco anos, fazia a mesma pergunta todas as semanas. Geralmente aos sábados e em alguns domingos.

Acredito que em São Paulo, o fazer churrasco era o espaço da semana em que o tempo ficava quase suspenso -- e eu e as crianças (mas principalmente o Mim) ficávamos quase todos ininterruptamente juntos. Em São Paulo morávamos numa casa com espaço para uma churrasqueira. Em Singapura mudamos para um apartamento. A churrasqueira, esperançosa, e ciente da sua importância na equação pai e filho, embarcou no container com os outros móveis para Singapura. Mas não deu. E hoje, no depósito do prédio, vive de contar histórias sobre memoráveis fins de semana para os outros móveis que também não couberam no endereço novo.

Bom, o Mim perguntava sempre sobre o churrasco. Sempre com partes iguais de água na boca e saudade. Com os meses, ele passou a perguntar menos. Até que parou. Já não me lembro qual foi a última vez que ele perguntou.

Até que um dia destes, num sábado, fomos ao cinema. "Inside Out" (Divertida Mente). O último filme da Pixar. Para efeito desse texto, tem um monte de spoilers sobre o enredo do filme daqui para frente.

Enquanto assistia ao filme, eu podia notar, ao meu lado, o curioso e doce menino Mim, bobo e fascinado com cada frame do filme --silenciosamente anotando num canto da cabeça uma infinita lista de “por quês?” para quando o filme chegasse ao fim.

Ao mesmo tempo, me vi, no decorrer de todo o filme, colocando algum membro da minha família no lugar da menina Riley, a protagonista da história.

O filme todo tem como base o furacão de emoções que se passa dentro de uma menina de onze anos de idade quando a sua família se muda. São extremos. Da congelada Minesotta para a quente San Francisco. De uma casa espaçosa com um lago no quintal para um apartamento e o trânsito da cidade grande. Esses extremos desenham o cenário perfeito para acompanharmos como as emoções se comportam dentro da cabeça dela. E já a partir dos primeiros minutos de filme, aprendemos como cada emoção Alegria, Tristeza , Raiva, Nojo e Medo são, na verdade, pequenos seres que controlam cada reação da menina Riley através de uma grande mesa com dezenas de botões e joysticks.

Pai, o Vermelhinho (Raiva) está mexendo na sua cabeça agora né?”. Já no primeiro puxão de orelha pós filme, o Francisco, meu filho mais novo, tentou decodificar minha bronca com o que acabara de assistir na tela do cinema. E eu respondi: “E na sua agora? Quem está controlando, o Roxo (Medo) ou a Azul (Tristeza)?”. “Acho que Roxo, acho que o Roxo. Se você puxar a minha orelha, aí, é o Azul. Tá?”.

O filme teve um efeito fantástico nas crianças. E confesso que o enredo da mudança da menina Riley para uma cidade tão diferente da sua cidade Natal, me fez enxergar três pequenas versões dela na minha casa. No lugar de Minesotta, San Francisco; São Paulo, Singapura.

Me fez pensar também no significado de morar fora. O que muda. O que fica. O que vem. O que adiciona. E o que subtrai. E é claro, e talvez o mais importante, o que multiplica.

No filme, ou melhor dentro da menina Riley, existem ilhas. Estas ilhas, as grandes ilhas de sentimentos, são alimentadas por memórias. E são as memórias mais marcantes que ela tem do que viveu que funcionam como pequenos reatores de energia para que essas ilhas mantenham funcionando o furação de emoções que é uma menina dessa idade.

Mas voltando ao churrasco e ao Mim. Seguindo em frente com a comparação, quando o Mim chegou em Singapura, arrisco dizer que ele tinha dentro da cabeça dele uma ilha inteira chamada “Churrasco de sábado”. Todos os nossos churrascos, todas as carnes queimadas, as que deram certo, o pão de alho, o queijo coalho, as compras no Pão de Açúcar do quarteirão. Tudo aquilo fez crescer uma ilha das grandes com este tema sobre essa parceria que construímos durante tantos fins de semana. E assim como no filme, uma vez que a ilha deixa de ser alimentada com memórias relevantes e marcantes sobre aquele tema— a ilha desmorona. Afunda, desaparece. Se você assistiu o filme, provavelmente concorda comigo que é o momento, ou o primeiro deles— que o filme aperta o peito de jeito. Foi ali, quando a primeira ilha da menina Riley afundou, que passou o filme do significado da mudança para os meu três pequenos filhos.

Não que eu não tivesse já entendido o impacto, a saudade dos amigos, da escola, da rotina e, claro, da churrasqueira para o Mim. Mas aquela cena simplificou qualquer conversa que eu viria a ter com eles depois.

Mim, lembra da churrasqueira que ficou no depósito do apartamento aqui de Singapura?”. Ele olhou para mim com um sorriso não escancarado, mas daqueles queridos que carregam um monte de coisas nele e disse: “Claro que lembro. Mas não cabe na sala né? O apartamento pega fogo né?”. E eu emendei: “Sabe as ilhas de memórias e sentimentos da cabeça da Riley? Quando elas começam a cair? Então, acho que a gente deixou a ilha do churrasco de sábado afundar na sua cabeça”. E ele: “É verdade. E como a gente faz?”. “A gente já fez Mim! A gente já fez tanta coisa nova juntos aqui em Singapura que você já tem tantas novas ilhas na sua cabeça”. Ele ficou olhando para mim e disse, agora com um sorriso escancarado: “É verdade. Agora tem a ilha dos cafés da manhã no rio né?”. “Sim, Mim. Tem a ilha dos parques. A ilha das novas amizades. A ilha até das comidas que você nunca tinha experimentado antes na sua vida. Tem a ilha dos dias que os seus avós que vivem no Japão—podem agora passar com você. São tantas ilhas de memórias e sentimentos novos, não é?”. Ele riu, não disse nada. Apenas estendeu a mão para seguirmos no caminho de casa.

E naquele caminho, conhecendo ele como eu conheço, tenho certeza que ele foi pensando, listando novas coisas, sabores, amigos, línguas, destinos, cheiros, raças, etnias, enfim, tudo novo que ele conheceu e conhece todos os dias ao ter se mudado.

Viver fora para mim é isso. É viver o que a Riley do filme viveu. É sentir o que o Menino Mim que eu tenho em casa sente todos os dias. Um misto de saudade do que deixou para trás com bastante fome de coisas até então desconhecidas. É multiplicar as ilhas de memórias e sentimentos e todas as bilhões de variáveis que fazem de você, você.

Pensei em escrever esse texto depois que a Luciana Ceccato me convidou para participar em um bate-papo muito legal que teve no último Festival do Clube (leia aqui). O assunto era esse: viver e trabalhar fora. Ao responder as perguntas, me lembrei desse dia. Do filme, da churrasqueira e do Mim.

Semana passada descobrimos uma churrascaria japonesa (Yakiniku). Ao lado de casa. Nela, o churrasco é feito ao centro da mesa numa grelha. O Mim adorou. Olhava para a grelha como se aquele fogo fosse o flux capacitor do Delorean que o transportava no tempo.

Essa semana ele me pediu para voltar.

Erick Rosa, diretor executivo de criação da Lowe & Partners Singapura

Leia a coluna anterior de Rosa aqui.

Um brasileiro em Singapura

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