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Criado-Mudo

Eu tenho inveja do meu

21.11.07

Eu tenho inveja do meu criado-mudo.


Uma inveja boa, vejam bem.


Ele realiza dia após dia sonhos juvenis, maduros, futuros…


Já passou a noite com Hemingway, Luis Fernando Veríssimo, com autores brasileiros de várias épocas e séculos. É capaz de descobrir o nome de um espírito psicografado pelo peso das palavras.


O potente criado-mudo tem dormido, nestes anos todos, com a maioria das capas da Playboy. Já varou a noite com o Chico Buarque, Noel Rosa, Tom Jobim, Pink Floyd e, num momento confuso, quase não se abre no dia seguinte por ter tido que aguentar sobre seus ombros meus próprios textos.


Crítico, mal acostumado e elitista este criado, ainda bem que mudo.


Tenho inveja do poder que tem sobre mim, meus horários, minhas vontades de acender ou apagar as luzes, a impossibiliade de manter em segredo os meus segredos em suas gavetas.


Ele tudo vê, ele tudo lê.


Todas as manhãs, me põe pra fora da cama, mas deixa claro que qual numa manhã de domingo, vai se dar ao luxo de ficar mais um pouco no sossego, no “dolce far niente”, vagabundo criado-mudo.


Na sua sapiência e onipresença, sempre se faz importante e insubstituível na hora de achar aquela aspirina, uma caneta acompanhada de um pedaço de papel, uma pilha ou um documento.


Ele é organizado, mais do que eu, é claro, e deixa isso evidente com seu eterno abrir suave de gavetas. Faz isso pra me provocar, tenho certeza.


Outra noite, acordei tendo a nítida impressão de ouvir sussurros e risadas abafadas. Era ele, safado criado-mudo, passando a noite com o Bukowski. Um cheiro de charutos e vinhos baratos tomou conta do quarto. Quase flagro o tarado.

Comum, nos meses de fevereiro, achar em sua volta pequenos brilhos, resultado certo de uma daquelas fitas de Carnaval. O folião mudo não se cansa.


Com o passar do tempo, porém, comecei a perceber que ele me esperava todas as noites para ouvir as novidades, compactuar com um santinho de campanha política, dar uma boa ohada num novo repertório. Aprendeu a se fazer surdo e mudo em noites de alcova e cobrar sedento por mais autores, mais shows, mais noitadas. O notívago criado-mudo me provocava com sua sede, sua quase grisalha mudez e desejos.


Tenho inveja deste meu criado-mudo.


Hoje, tenho certeza de que sou eu, na verdade, não mudo, mas seu criado.


 Luciano Traldi, sócio e diretor de atendimento da Coyote Filmes


luciano@coyotefilmes.com.br


Comentários 

rita - oi lu, legal seu texto. sorte na coyote!


Paulo - Ah essa alcova, essa alcova.


LULI - POR ONDE VOCE ANDA BICHIN?


 Fan de Campinas - Ou seria fã?


bia - adoro, assim como seu criado-mudo, fazer parte das suas noitadas... 


Fan de C. - Nossa, pensei que as noitadas eram só comigo. Audácia.

Edu - EU SABIA !!!! FICA COM ELE, SEU ... SEU ...


Paula - Gente, trata-se de um quinteto amoroso, é isso? o dono do criado, o criado, a fan, a bia e o edu? que babado quente ein luciano.


Roberta - sou leitora assídua da coluna e nunca vi descambar para noitadas. bacana essa vertente, reinventou a seção. mas deve ser lida apenas depois das 23h.


JULIANA - QUE INSPIRAÇÃO, HEIN? MUITO BOM.

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